quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Amazonas: história e mito se confundem

Por Douglas Barraqui

“Eram 10 ou 12 mulheres guerreiras que vieram ajudar os nativos na sua peleja. A estas, nós as vimos: andavam combatendo diante de todos os índios como capitães e lutavam tão corajosamente que os índios não ousavam lhes mostrar as costas. São muito alvas e altas, com cabelo muito comprido, entrançado e enrolado na cabeça. São muito membrudas e andam nuas a pelo, tapadas em suas vergonhas; com os seus arcos e flechas na mão fazem tanta guerra como dez índios”.

O relato acima é de autoria do frei dominicano Gaspar de Carvajal, cronista da malfadada expedição de Francisco de Orellana; naquela que havia de ser a primeira expedição a percorrer integralmente o curso do rio Amazonas, desde os Andes ao oceano Atlântico e, que também, batizou o rio com esse nome. O trecho acima descreve as “mitológicas” amazonas que legaram seu nome ao maior e mais volumoso rio e a maior floresta equatorial do mundo.

Na mitologia grega amazonas eram as integrantes de uma antiga nação de habilidosas guerreiras que, segundo Heródoto, no Livro IV, habitavam a fronteira da Cítia, na Sarmácia. Segundo a mitologia entre as rainhas célebres das amazonas estão Pentesileia, que teria participado da Guerra de Troia, e sua irmã, Hipólita, cujo cinturão foi o objeto de um dos doze trabalhos de Hércules. Saqueadoras, as amazonas eram frequentemente ilustradas em batalhas contra guerreiros gregos. Tão boas arqueiras, quanto na arte de montar cavalos, retiravam um dos seios para facilitar o manejo do arco e flecha. Buscando a etimologia da palavra amazona, "a" é um prefixo negativo; "mazos" = peito, mama; logo Amazona significaria "sem peito". Mito ou história? Estudos recentes apontam que as amazonas, que habitavam a Cítia, eram iranianas conhecidas por montar a cavalos. Os jônicos, sempre ameaçados pelos persas - os mais importantes dentre os iranianos -, foram os primeiros a entrar em contato com as bravas guerreiras. Amazōn é a forma jônica para a palavra ha-mazan de origem iraniana, cujo significado é “lutando junto”.  

Mas como o mito das amazonas foi parar na América? Em fevereiro de 1541, Francisco de Orellana - que em 1535 participou, juntamente com Francisco Pizarro, da conquista do Peru - liderava uma expedição com 21 homens e mais o frei Gaspar de Carvajal pelo rio Napo. A expedição fora se juntar ao imenso grupo liderado por Gonzalo Pizarro que havia partido da capital do império Inca em busca da mítica cidade de El Dorado e o “reino da canela” – uma especiaria tropical muito bem quista no século XVI, boa para o pulmão, antisséptica e digestiva.

Francisco de Orellana
Em dezembro de 1541 Orellana e Pizarro enfim venceram as terras áridas e geladas dos Andes. Famintos e doentes aqueles homens agora enfrentariam a floresta mais perigosa do mundo, nunca antes penetrada por um europeu. Pizarro teria jogado aos cães metade dos já debilitados índios sobreviventes e queimado vivo o restante. Após construir um barco Orellana, com 57 homens, começou a descer o rio que viria a ser chamado de Coca, que deságua no Napo, que é afluente do Ucayali, que no Brasil é chamado de rio Solimões. O Solimões, por sua vez, é um dos formadores do grandioso rio que viria ser batizado de “rio das Amazonas”, rio no qual a embarcação de Orellana, juntamente com Carvajal, adentrou no dia 11 de fevereiro de 1542.

Na descida da imensidão das águas a idéia era saquear as aldeias para conseguir mantimentos e recursos. Sem encontrá-las, famintos, os homens comeram o couro dos cintos e das botas fervidos em água e ervas. Em julho daquele ano, na confluência do rio que hoje é chamado de Madeira, como narrou Carvajal, a expedição se deparou com 12 bravas amazonas. No conflito alguns homens perderam a sua vida e sete das bravas mulheres perderam as suas.

Aquelas, na verdade, eram as, já conhecidas pelos nativos, cunhapuiara, que quer dizer “grandes senhoras”. Antes, ainda em Quito, de onde partiu a expedição, diz Carvajal: "nos haviam contado a respeito das guerreiras, a quem os índios chamavam de coniupuiara”.

De fato o relato mais detalhado das tais “grandes senhoras” é do Frei Gaspar de Carvajal que mesmo sem uma das vistas, perdida para uma flechada, sobre as guerreiras que partiram para lutar junto a índios que se encontravam na foz do rio Jacundá, escreveu:  "Quero que saibam qual o motivo de se defenderem os índios de tal maneira: são súditos e tributários das Amazonas, e conhecidos a nossa vinda, foram pedir-lhes socorro e vieram 10 ou 12 delas. Aí perguntou o Capitão Orellana: Que mulheres eram aquelas que tinham vindo ajudá-los a fazer-nos guerra. Disse o índio que eram umas mulheres que residiam no interior, a umas sete léguas de Jornada da costa, e por seu senhor Couynco, seu súdito, tinham vindo guardar a costa. Perguntou o Capitão se estas mulheres eram casadas, e o índio disse que não. Perguntou o Capitão de que modo vivem. Respondeu o índio que vivia no interior, e que ele tinha lá estado muitas vezes e visto o seu trato e residências, pois como seu vassalo, ia levar o tributo, quando o senhor o mandava. Perguntou o Capitão se estas mulheres eram muitas. Disse o índio que sim, e que ele sabia, pelo nome, setenta aldeias, e os contou diante dos que ai estava, e que em algumas havia estado. Perguntou o Capitão se estas aldeias eram de palha. Disse o índio que não, mas de pedra e com portas, e que de uma aldeia a outra iam caminhos cercados de um e outro lado e de distância em distância, com guardas, para que não possa entrar ninguém sem pagar direitos. Perguntou-lhe o Capitão se estas mulheres pariam. Disse o índio que sim. Perguntou o Capitão como, não sendo casadas, nem residindo homens com elas emprenhavam. Ele disse que estas índias coabitavam com índios de tempos em tempos, e quando lhes vem aquele desejo, juntam grande porção de gente de guerra e vão fazer guerra a um grande senhor que reside e tem a sua terra junto a destas mulheres, e a força, a os trazem as suas terras e os tem consigo o tempo que lhes agrada, e depois quando vem o tempo de parir, se tem filho o matam e o mandam ao pai; se é filha, a criam com grandes solenidades e a educam nas coisas de guerra. Disse mais, que entre todas estas mulheres há uma senhora que domina e tem todas as demais debaixo de sua mão e jurisdição, a qual senhora se chama Conhori.”

Carvajal nunca afirmou que as tais guerreiras eram extirpadas dos seios. Mesmo assim ele as chamou pelo mesmo nome que Homero utilizou, no século VIII a. C., para se referir as mulheres guerreiras da antiga Cítia, amazonas. De fato, entre os índios da América, não era raro às vezes em que as mulheres iam à guerra com os homens e, porque não, sem eles, para defender sua tribo.

Carvajal ajudou, é certo, a recriar a lenda das amazonas em uma versão para a América. O belicoso combate, quando contado ao rei Carlos V da Espanha, este ficou de certo modo tão impressionado que, inspirado nas antigas guerreiras da Cítia, as amazonas, assim deu o nome ao rio. O que, também foi feito com a maior floresta equatorial do mundo que o cerca.

Referências:

BERGMANN, F. G. Les Amazones dans l'histoire et dans la fable. Colmar, 1853.

MOTT, Luiz. As Amazonas: um mito e algumas hipóteses. Revista de História. Universidade Federal de Ouro Preto. Volume1 NPI 1990.

KLEISSMANN, M. Les Amazones dans l'Artet la Litterauire Auiques. Paris, 1875.


LACOUR, P. Les Amazones. Paris, 1901. 3. 

sábado, 16 de agosto de 2014

quinta-feira, 26 de abril de 2012

A Natureza que D. João VI viu no Brasil

Entrada do Jardim Botânico e suas Palmeiras-Imperiais, s/d. SISSON, Sebastien Auguste Youds, J. - Museu Imperial, Petrópolis, RJ.Crédito: Visões do Rio na Coleção Geyer, Centro Cultural Banco do Brasil
Por Edson Struminski
Que tipo de paisagem D. João VI e os portugueses que com ele vieram viram no Brasil? Que relações esta paisagem ainda guarda com a realidade brasileira após 200 anos? A vinda da Família Real portuguesa para o Brasil em 1808, foi um marco e um acontecimento sem precedentes na história brasileira, pois foi a primeira vez que uma monarquia europeia pisou em solo americano. 

Após várias revoltas com vernizes liberais e republicanos acontecidas no país, no século XVIII, a chegada da corte reforçaria a ideia do papel do Estado monárquico conservador, mas, ao mesmo tempo, faria com que os velhos padrões económicos coloniais se vissem ameaçados pela abertura e liberalização dos portos, a qual favoreceria os grandes comerciantes cariocas em detrimento dos portugueses da Metrópole.

Como também é bem conhecido, a transferência da corte trouxe para a América portuguesa não só a Família Real, mas também o governo da Metrópole e, sobretudo, boa parte do aparato administrativo português. No total algo em torno de 20 mil pessoas transferiram-se de Portugal para o Rio de Janeiro e tiveram de se ajeitar em uma cidade precária, gerando com isto um caos urbano, situação que entrou para o folclore do país.

No entanto, apesar da imagem caricata com que é pintado muitas vezes no Brasil e que aparece em filmes como "Carlota Joaquina", D. João era um monarca esclarecido e sua vinda alterou o status político do Brasil, além de criar uma nova base para seu desenvolvimento. Villalta (1997), mostra que a transferência da corte para o Rio trouxe não só a abertura económica e a demanda por instalações industriais inexistentes no Brasil mas também impulsionou a política de desenvolvimento de pesquisas científicas, incluindo jardins botânicos e a abertura de instituições de ensino, ainda que estas fossem marcadas, por um carácter pragmático e fragmentado (aulas régias) que não levaram a um progresso científico expressivo e não alteraram a dependência da Universidade de Coimbra, mas que fomentaram o início da ciência no Brasil.

Tão importante como este fato, a abertura do país abriu para os olhos dos naturalistas e pesquisadores europeus, a imensa e espantosa natureza tropical brasileira, que até então tinha sido mantida escondida a sete chaves pelos administradores portugueses.

De facto, tornar-se-iam frequentes, não só durante a presença de D. João, mas pelo período imperial adentro, as viagens e expedições elaboradas por cientistas dos mais variados países, que invariavelmente se mostrariam deslumbrados com as belezas da natureza tropical e se disporiam a toda sorte de desconfortos para conhecê-la.

O jovem e esforçado botânico francês Auguste de Saint-Hilaire passou 6 anos viajando pelo Brasil, a partir de 1816. De forma simples ele explica a curiosidade que a terra brasileira exercia sobre ele e sobre os cientistas da época: "O gosto pela história natural faz nascer o de viajar... Quando o rei D. João VI mudou para o Rio de Janeiro a sede do seu império, o Brasil abriu-se finalmente, para os estrangeiros. Essa terra, nova ainda, prometia aos naturalistas as mais ricas messes, foi ela que eu me dispus a percorrer".

E é assim, pelos olhos destes naturalistas europeus que podemos vislumbrar a natureza que podia ser encontrada no período joalino no Brasil, uma natureza que ainda tinha muito de selvagem, como sugere a frase a seguir, de Spix e Martius, citada pelo historiador Warren Dean (1997): "É indiscutível o encanto desta região, onde frescos bosques alternam com extensas campinas cheias de claras fontes e de grupos majestosos de palmeiras, o qual é realçado pelo fato de não parecer profanado pela mão da civilização".

"Larangeiros" 1824
"Larangeiros" 1824
Saint-Hilaire dá-nos uma indicação clara de como entender este ambiente: "Para conhecer toda a beleza das florestas tropicais, é necessário penetrar nesses retiros tão antigos como o mundo". De facto, nas palavras deles veríamos que a imponência das florestas tropicais levaria à formação de um julgamento erróneo a respeito da antiguidade destas florestas, que levaria décadas para ser desfeito. Efectivamente as árvores eram velhas, porém as florestas tropicais eram jovens componentes da paisagem do ponto de vista geológico. 
No fim do período colonial o grande assalto à natureza do Brasil ainda estava por acontecer na região sudeste do país, um assalto que alteraria radicalmente sua paisagem. Na época de D. João VI e por vários anos, porém, a paisagem ainda reservaria, muito da sua natureza primitiva, algo que provavelmente a corte portuguesa ainda viu no país.

Saint-Hilaire saindo do Rio de Janeiro em direcção a Minas Gerais, comenta o que vislumbrou: "Florestas virgens tão velhas como o mundo exibem sua imponência, quase às portas da cidade e formam um contraste encantador com o trabalho dos homens". Ao mesmo tempo ele nos dá conta da agitação necessária para manter a cidade: "As estradas vizinhas da capital do Brasil são hoje em dia tão movimentadas como as que conduzem às grandes cidades da Europa".

Por esta época, o açúcar, que havia sustentado a colónia, já estava sofrendo uma lenta queda na cotação do comércio externo em função da concorrência de Cuba e do açúcar de beterraba europeu e o café ainda não se havia tornado o pólo dinâmico do sistema agro-exportador brasileiro, algo que só aconteceria a partir de 1830, com auge na segunda metade do século XIX.

Passando os arredores mais imediatos do Rio de Janeiro, Saint-Hilaire corrige-se e constata que a própria vizinhança da cidade ainda tinha uma ocupação urbana modesta com áreas de natureza preservada: "Se próximo ao Rio de Janeiro podemo-nos julgar nos arredores de uma das maiores cidades da Europa, essa ilusão em breve se dissipa. À medida que nos afastamos.... vê-se cada vez menos habitações, as vendas rareiam, encontram-se menos terrenos cultivados, os bosques tornam-se mais comuns e como cada vez mais nos aproximamos das montanhas, o aspecto da região toma carácter mais grave".

A paisagem, no entanto, era outra na antiga região aurífera das Minas Gerais, então em queda populacional após o auge da exploração mineral que ocorreu no fim do século XVIII. Após passar por Vila Rica, primeira capital desta província, Saint-Hilaire constata que "os morros que a rodeiam são cobertos por uma relva pardacenta e exibem a imagem da esterilidade".

Ele dá-nos uma medida para avaliar as mudanças ocorridas: "Bastaram-nos duas horas de trajecto para chegar a Mariana..., os primeiros habitantes gastavam cinco dias, quando a região ainda era coberta de matas virgens." Como outro visitante ilustre, o brasileiro José Bonifácio já havia constatado, o desmatamento levava a uma decadência geral, devido à baixa fertilidade natural dos solos. Saint-Hilaire também percebeu isto, pois para ele "todo o sistema de agricultura brasileira é baseado na destruição de florestas e onde não há matas, não existe lavoura". As próprias minas de ferro, riquíssimas na época, não podiam ser exploradas por falta de combustível.

No entanto, se o hábito da queimada era usual na população, ele também recebia incentivos oficiais do Estado. Saint-Hilaire explicou isto da seguinte forma: "Por um ignorância fácil de compreender quando se conhecem as relações do governo português com suas colónias, o próprio ministério, que se devia opor com todas as forças à destruição das matas, também contribui para acelerá-la... Por ocasião da chegada do soberano, o conde de Linhares fez promulgar um decreto que isentava de impostos, durante dez anos, os colonos que se fossem estabelecer no meio das matas".

Saint-Hilaire cumpria assim o papel de crítico ambiental que os cientistas teriam a partir de então. Ele simplesmente notou que o ciclo agrícola queimada-plantio-abandono durava menos que dez anos, gerava destruição e nenhum imposto pago.

Mesmo com estes impactos evidentes em Minas Gerais, os visitantes ainda teriam oportunidade de conhecer belas paisagens no país. Em 1832, poucos anos após a independência do Brasil esteve no Rio de Janeiro, outro ilustre visitante, que teria oportunidade de conhecer um pouco de uma paisagem que ainda permanecia selvagem, o inglês Charles Darwin. Darwin pôde vislumbrar vistas deslumbrantes em pontos que hoje estão envoltos pela malha urbana desta cidade.

Em uma excursão à Pedra da Gávea, imponente montanha à beira mar, ele mostra-se estonteado com a paisagem, como podemos ver no texto retirado do seu diário de viagem: "Seguindo por uma picada, penetrei no interior de uma nobre floresta e, de uma altura de cento e cinquenta a duzentos metros, pude contemplar um dos soberbos panoramas tão comuns ao redor de todo o Rio. Vista desta altura, a paisagem atinge o máximo de brilho no seu colorido e todas as formas e sombras ultrapassam de modo tudo quanto um europeu possa jamais ter visto em sua terra natal, que não sabe como há de expressar as emoções do seu espírito".

Após a metade do século XIX o plantio do café iniciaria uma dinâmica de ocupação de solos e desmatamentos que só cessaria em 1930 e devastaria boa parte da Floresta Atlântica brasileira. No entanto esta região da Gávea visitada por Darwin teve um curioso destino. Sua floresta foi queimada e transformou-se em plantação de café no decorrer do século XIX, mas acabou sendo desapropriada ainda durante o império frente à constatação de falta de água para a capital do país gerada por esta ocupação predatória. Acabou sendo palco de um inédito projecto de recuperação ambiental que levou à formação de uma floresta secundária que, décadas depois, acabaria virando um parque nacional urbano. Assim, fato raro, podemos ainda vislumbrar nos caminhos que andam pela Pedra da Gávea, um pouco das imagens e sentir um pouco das sensações dos portugueses que desembarcaram no Brasil em 1808.

BIBLIOGRAFIA

VILLALTA, L.C. O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura. In: História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. V.1. p. 331 - 386.

DEAN, W. A ferro e a fogo, a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

SAINT-HILAIRE, A. Viagem pelas Províncias de Rio de Janeiro e Minas Geraes. Tomo I. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938.

DARWIN, C. Viagem de um naturalista ao redor do mundo. São Paulo: Abril Cultural, s/d.

Fonte: Rede Brasileira de História Ambiental

A Descoberta Biológica do Brasil

Litrografia de Loeillot (1840-1876)
Por Edson Struminski

A descoberta de um novo mundo habitado por povos e por uma natureza então desconhecidos foi o fato mais extraordinário e decisivo da história moderna ocidental. Este fato desencadeou uma vasta elaboração de discursos e visões sobre esta nova natureza descoberta. 

A carta de Pero Vaz de Caminha, cronista da descoberta portuguesa do Brasil, ao rei D. Manuel costuma ser considerada o primeiro documento literário sobre o Brasil. Caminha era um letrado, de formação humanista, assim ele se mostra muito mais interessado em descrever os povos indígenas e seus costumes que a natureza, o ambiente e os recursos do mundo que via, algo que eventualmente até teria até mais interesse para a Coroa portuguesa. Mesmo assim é no documento de Caminha que aparecem os primeiros registros de aves, peixes, repteis e também uma descrição, no mínimo acertada da nova terra. “Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa” (1).

Do levantamento que Cândido de Mello Leitão, que resgatei, elaborado em 1937 sobre a história da biologia no Brasil (2), podemos constatar que esta ciência estava em estágio embrionário nos anos 500. Assim, o que tivemos no Brasil, por certo tempo, foram cronistas, mais ou menos espantados com a natureza brasileira, mas que se limitaram a descrever animais e plantas vistos de passagem pelo país. É o caso de Caminha e também de Américo Vespúcio, Francisco Pigafetta (cronista da viagem de Fernão de Magalhães), do espanhol Cabeza de Vaca e de Ulrich Schmidel e Hans Staden, alemães que chegaram a viver alguns anos no Brasil.

Mas existem exceções.  Mello Leitão considera o jesuíta José de Anchieta o fundador da história natural do Brasil. É de 1560 uma epístola de Anchieta que descreve, ainda com uma certa dose de fantasia, a flora e a fauna brasileira. Mas ele segue um método, o método quinhentista, que classifica a fauna em “aquáticos, terrestres e aéreos”. Anchieta refere-se, desta forma, a 25 animais, que vão de grandes mamíferos a invertebrados, incluindo, ainda, sete espécies de serpentes, a respeito das quais descreve sintomas de envenenamento e tratamentos, além de diversos mamíferos que eram usados, então, para alimentação pelos indígenas.

Na parte botânica da sua epístola, também segundo o molde quinhentista, Anchieta descreve “plantas alimentícias” entre as quais raízes e frutos ainda hoje utilizados no Brasil como a mandioca ou o caju e medicinais, incluindo aí seu uso pelos indígenas. Anchieta realiza assim, com sua descrição de plantas e animais, juntamente com seu uso humano, um primórdio do que hoje entenderíamos por etnofauna e etnobotânica.

Mello Leitão prossegue descrevendo a “História da Província de Santa Cruz”, do português Pero de Magalhães Gandavo, que ele considera inferior ao trabalho de Anchieta, mas que ainda assim acrescenta novidades em um capítulo sobre avifauna, onde descreve animais vistosos como gaviões e papagaios.

Do franciscano francês André Thevet, tem-se novamente o relato, sem método, dos viajantes da época. Os franceses tiveram uma curta aventura colonialista no Brasil e Thevet vem falar das “singularidades” desta França Antartica, entretanto é um apanhado inferior ao de Anchieta, muito embora sempre apareçam descrições de novas espécies. Do mesmo modo é o trabalho de Jean de Lery, que afirmou viver com os Tupinambás por quase um ano e foi rival de Thevet, a quem contestou em seus escritos. Ele descreve “animais, caça, grandes lagartos e outros seres monstruosos da América” e aves “boas de comer” e outras de plumagens belas, tão apreciadas na Europa na época, mas segundo Mello Leitão, seu trabalho é inferior aos de seus antecessores. Lery demonstra conhecer umas vinte plantas, entre as quais o fumo e o pau-brasil (Caesalpinia echinata), esta última a árvore que seria o primeiro “produto de exportação”, na verdade contrabando, da nova nação.

Novamente é a partir de outro jesuíta, Fernão Cardim, que entre 1583 e 93 esteve no Brasil que surge a produção de um documento de valor sobre a biologia brasileira em “Do clima e Terra do Brasil”. Neste documento surge uma lista mais completa de mamíferos e uma descrição mais completa dos animais, que a dos antecessores. Da mesma forma, a descrição botânica de Cardim é mais completa, com dez capítulos onde aparecem árvores que dão fruto, outras medicinais, as que dão óleo ou madeira, as ervas comestíveis e medicinais, além de canas (bambusáceas) e as espécies de mangue.

Com Gabriel Soares de Souza surge uma interessante novidade. Vindo ao Brasil em 1567 para tornar-se senhor de engenho, Soares de Souza fixa-se na região nordeste do país, ao contrário dos cronistas anteriores, que escreveram sobre a natureza do sul e sudeste brasileiro. Escreve um “Tratado descritivo do Brasil”, com cinqüenta e nove capítulos para animais e quarenta e um para plantas. Embora seu livro misture, segundo Mello Leitão, observações judiciosas com lendas e confusões, ainda assim considera seu livro como mais um dos marcos confiáveis sobre o estudo biológico no Brasil.

Warren Dean (3), considera que os esboços e relatos produzidos no século XVI no Brasil eram esforços amadores e que o interesse da Metrópole pela vegetação e pela vida animal da colônia era limitado. Segundo ele, os colonizadores preferiram ignorar as espécies nativas e efetuar transferências bióticas já conhecidas por eles para o Brasil a partir de regiões semi-tropicais européias, ou de regiões tropicais de suas colônias asiáticas ou africanas. Este fato é real e mesmo hoje, a base da agropecuária brasileira é feita a partir destas espécies introduzidas. Mas a análise de Dean não é totalmente correta.

Certamente o intento português de conquistar e transformar o novo território se evidenciaria no pragmatismo das relações dos colonizadores com o novo ambiente. Em um primeiro momento, o desprezo ou escravização da população nativa e destruição dos ecossistemas naturais seria realizado para viabilizar a implantação da monocultura do açúcar.

Mas para sermos justos com os portugueses, da leitura de Mello Leitão percebe-se que entre os europeus, foram na verdade, os letrados deste país, religiosos ou leigos, que produziram os conhecimentos mais interessantes, do ponto de vista biológico, da natureza do Brasil nos anos 500. Eles utilizaram as ferramentas de produção de conhecimento, que incluía a classificação de animais e plantas, compatíveis com o status científico europeu da época. Possivelmente estes cronistas descreveram inclusive as primeiras espécies extintas no Brasil por conta da exploração predatória dos colonizadores.

De qualquer modo, o conhecimento biológico levantado por portugueses teve destino diferente daquele produzido por outros europeus que estiveram no Brasil, o que mostra, de fato, um descaso com o trabalho destes primeiros cronistas. Enquanto alemães e franceses publicavam, sem maiores dificuldades, seus relatos de viagens e observações, portugueses tinham seus originais desprezados ou roubados. Anchieta só foi publicado em 1799, Gabriel Soares de Souza em 1825 e Fernão Cardim teve seus escritos tomados pelo corsário Francis Cook que o aprisionou em uma viagem a Portugal e vendeu seus escritos, que foram publicados por Samuel Purchas, na Inglaterra, em 1625.

Por Edson Struminski, eng. florestal, Dr. em Meio Ambiente e Desenvolvimento - Brasil

PEREIRA, P. R. Os três únicos testemunhos do descobrimento do Brasil. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1999.

MELLO LEITÃO, C. A biologia no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937.

DEAN, W. A ferro e a fogo, a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

ONGs ambientalistas pedem veto do Código Florestal para Dilma

Os grupos ambientalistas WWF e Greenpeace denunciaram nesta quinta-feira a reforma do Código Florestal aprovada pela Câmara dos Deputados e pediram à presidente, Dilma Rousseff, se oponha às mudanças que 'põem em perigo' os avanços obtidos na Amazônia.

 

Em declarações distintas, divulgadas em Madri, as organizações destacaram que a nova lei é 'um duro golpe' às promessas da presidente brasileira, que tinha se comprometido a lutar contra a anistia para crimes florestais do passado.

A Câmara dos Deputados aprovou na última quarta-feira a reforma das leis que regulam o uso dos solos e estabeleceram uma redução das áreas protegidas em favor da atividade agropecuária. A mudança ainda inclui uma ampla anistia aos fazendeiros que, durante as últimas décadas desmataram ilegalmente territórios da Amazônia.

'A presidente Dilma prometeu que não toleraria as leis que promovessem novas ondas de desmatamento ou anistiassem crimes florestais do passado. Ela sabe que estas mudanças são negativas para o Brasil e para o meio ambiente. Pedimos que mantenha suas promessas', disse a nota da diretora geral da WWF Brasil, María Cecilia Wey de Brito.

Na mesma linha, a Greenpeace falou: 'O Brasil deu um passo decisivo para trás. A aprovação da reforma é uma derrota para a floresta amazônica e para a presidente Dilma'. O diretor da campanha da Amazônia em Greenpeace Brasil, Paulo Adario, destacou que o voto do Governo nas mudanças do Código Florestal contribui para uma má reputação do Brasil como líder global na luta contra o desmatamento e mudança climática.

A WWF também advertiu que, com a medida, o Brasil não poderá cumprir seus compromissos internacionais de redução de emissões de CO2 nem as taxas de desmatamento. De acordo com a organização, a nova legislação poderia gerar uma perda de mais de 76,5 milhões de hectares florestais, supondo a emissão de 28 bilhões de toneladas de CO2 à atmosfera.

Sobre a anistia aos fazendeiros, os ecologistas da WWF alertaram que não só beneficia os proprietários, mas provoca perdas de US$ 4,8 bilhões em multas. Além disso, acrescentaram que a reputação da economia brasileira sofreria 'um grave prejuízo global'.

fonte: http://noticias.br.msn.com/artigo.aspx?cp-documentid=33508130

domingo, 15 de abril de 2012

Titanic: o que podemos aprender

Por Douglas Barraqui

Há cem anos atrás a natureza demonstrou ao homem a sua força implacável e colossal. Um simples bloco de gelo, obra da mãe natureza, colocaria em baixo da água, e não em cima dela, uma das maiores obras da engenharia humana: o RMS Titanic.

O Titanic foi fruto de uma sociedade industrial, de um período de cultura cosmopolita da sociedade europeia, momento de avanços tecnológicos que mudariam o mundo a exemplo do telegrafo, o telefone sem fio, o cinema, a bicicleta, o automóvel e o avião. Inventos que inspiravam no homem uma nova percepção a mercê da realidade: era a Belle Époque, bela época em francês.

Essa mesma sociedade do início do século XX devastava a natureza de modo atroz e voraz. Era o preço do luxo, das praticidades e comodidades da bela época.

Concebido para ser inafundável” dizia um folheto publicado em 1910 da White Star Line empresa operadora do navio. Com quase 50.000 toneladas de aço e 270 metros de comprimento o Titanic era o maior navio de passageiros do mundo. Resultado das mais avançadas tecnologias disponíveis na época.

Mas o que parecia impossível aconteceu: na noite do domingo do dia 14 de abril de 1912, por volta das 23:40 o Titanic se chocaria com um bloco de gelo a deriva no oceano, afundando na manha do dia seguinte. De 2.240 pessoas a bordo o naufrágio vitimou, nas gélidas águas do Atlântico Norte, 1.523 pessoas.

Foi um grande choque para a sociedade daquela época. Apesar do que havia de melhor de tecnologia e de uma experiente tripulação, o inafundável Titanic não só afundou como levou a morte milhares de pessoas.

E o que podemos aprender com Titanic? Atualmente nossa sociedade industrializada, consumista e capitalista não estaria indo em rota de colisão com as forças desconhecidas da mãe natureza. Segundo relatório intitulado “A Economia dos Ecossistemas e da Biodiversidade para Políticas Locais e Regionais”, as cidades atualmente ocupam um pouco mais de 2% da superfície da terra, e que mais da metade da população mundial vive nelas e que, de forma alarmante, já consumimos mais de 70% dos recursos naturais disponíveis em nosso planeta.

Assim como o Titanic não era inafundável, nós não somos inatingíveis. Temos que superar o “paradigma da imunidade humana” (human exemptionalism paradigm) aos fatos naturais, como nos fala José Augusto Drummond. Não estaríamos, todos nós, a bordo de um grande barco em uma trágica rota de colisão com nosso passado de séculos de espoliação desenfreada dos recursos naturais de nosso planeta? Teremos o mesmo fim trágico daqueles abordo do Titanic?

Referência:

DRUMMOND, José  Augusto. A história ambiental: temas, fontes e linhas de pesquisas. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Vol. 4 n. 8, 1991, Pg. 179.

Relatório: "A economia dos Ecossistemas e da Biodiversidade para Políticas Locais e Regionais" (Teeb na sigla em inglês). Lançado no Brasil em 9 de setembro de 2010, em workshop realizado em Curitiba, no Paraná. Disponível em: http://www.teebweb.org/Portals/25/TEEB%20Synthesis/TEEB_Sintese-Portugues_web[1].pdf. Acesso em 15 de abril de 2012.

sábado, 14 de abril de 2012

Planteta vivo e planeta morto

Por José Eustáquio Diniz Alves

Muita gente acha estranho quando se diz que a humanidade já está consumindo 1,5 planeta (um planeta e meio), sendo que, segundo a metodologia da pegada ecológica, o mundo deverá atingir -dependendo da continuidade do ritmo de loucuras do modelo atual – o consumo equivalente a 2 planetas entre 2030 e 2050.

Mas como é possível consumir mais de um globo terrestre? A resposta é simples: não existe apenas um planeta Terra, mas sim dois, um planeta vivo e um planeta morto. O planeta vivo está na superfície e o planeta morto está no subsolo.

O planeta morto é composto por material orgânico decomposto e que foi fossilizado em decorrência dos efeitos da pressão e da temperatura elevadas atuando durante milhões de anos junto ao processo de soterramento. A matéria orgânica é constituída por substâncias contendo carbono na sua estrutura molecular. A queima deste carbono transforma este material em combustíveis fósseis. O carvão mineral, o petróleo e o gás natural são os combustíveis fósseis mais utilizados, servindo para colocar em movimento as locomotivas, trens, carros, caminhões, navios, além de gerar eletricidade para toda a cadeia produtiva da economia (inclusive hospitais e escolas) e para o consumo particular das famílias.

Os combustíveis fósseis, além de serem finitos, provocam grande poluição (como a liberação de mercúrio que polui as águas) e são um dos principais responsáveis pelo efeito estufa que aquece a atmosfera da Terra e provoca mudanças climáticas. A utilização dos combustíveis fósseis possibilitou que a população humana e a economia apresentassem um crescimento sem precedêntes nos últimos 200 anos. A humanidade se espalhou por todo o planeta, destruindo biomas e comprometendo a qualidade das águas, ao mesmo tempo que vai reduzindo a capacidade de regeneração da Terra. Num processo de crescimento permanente da pegada ecológica, o ser humano ultrapassou as fronteiras planetárias.

Porém, cabe a pergunta: é possível consumir mais de um planeta? Sim, no curto e médio prazo, da mesma forma como é possível uma pessoa gastar mais do que recebe. Tudo depende das condições herdadas. Suponha que uma pessoa herdou uma empresa LTDA que tenha um capital de R$ 10 milhões de reais e forneça uma receita líquida mensal de R$ 20 mil para o herdeiro proprietário. Mas suponha que este felizardo proprietário resolva gastar em média R$ 30 mil por mês. Provavelmente este esbanjador conseguirá viver nesta situação por 20 ou 30 anos. Todavia, irá certamente à falência depois de destruir o patrimônio herdado. Isto acontece com frequência e está explícito naquele velho provérbio: “Pai rico, filho nobre, neto pobre”.

Jorginho Guinle é um “bom” exemplo (a ser evitado) de pessoa que passou toda a vida torrando os recursos herdados e prisioneiro de um consumismo fútil e exibicionista. Segundo a Wikipedia: “Jorge Guinle (1916-2004) foi um socialite, playboy e herdeiro milionário brasileiro. Viveu a época áurea do Rio de Janeiro entre a década de 1930 e 50, onde conheceu e acredita-se que tenha tido relações amorosas com diversas atrizes de Hollywood. Residiu no hotel Copacabana Palace (fundado por seu tio, Octávio Guinle) até a sua morte, gabando-se de nunca ter trabalhado na vida. Jorge se orgulhava de ter gasto a fortuna de quase cem milhões de reais que lhe foi deixada de herança”.

De certa forma, a humanidade está seguindo o princípio de Jorginho Guinle de viver dos recursos da herança (“trabalho morto” apropriado e acumulado, como ocorrido com os antigos Guinles) e gastar mais do que a mãe Terra oferece. A humanidade está vivendo da riqueza deixada e acumulada durante milhões de anos em forma de combustível fóssil. A economia e a renda per capita mundial cresce na medida em que essa herança é, literalmente, queimada.

Ou seja, a humanidade está consumindo e torrando o planeta morto e transformando a matéria orgânica fóssil em CO2 que fica acumulado na atmosfera (provocando o aquecimento global). Concomitantemente, o ser humano está também destruindo ou danificando seriamente as matas, os rios, os lagos e os oceanos. Ou seja, a humanidade está montando uma máquina de consumo que está queimando o planeta morto e destruindo o planeta vivo.

A falta de compromissos sérios por parte dos governos e das Conferências da ONU indica que este processo deve continuar até 2050.

Provavelmente, em meados do século XXI, os cerca de 9 billhões de habitantes do mundo estarão em situação semelhante àquela da senilidade de Jorginho Guinle (ou como o decadente idoso personagem central do romance Leite Derramado de Chico Buarque). Isto é, a humanidade vai estar com um passivo contábil muito grande, mas sem a contrapartida do ativo natural para sustentar o padrão de vida.

A continuidade deste processo vai tornar quase impossível a sobrevivência de todos os seres vivos depois que a humanidade queimar os restos do planeta morto e destruir o planeta vivo.

José Eustáquio Diniz Alves, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal.