sexta-feira, 20 de agosto de 2010

História e natureza

Por Sérgio Buarque de Holanda

O interesse, não apenas de curiosidade que, cada vez mais, vêm provocando entre nós as questões de ordem filosofica, representa o indicio talvez caracteristico de uma direção nova nas preocupações dos nossos escritores e, até certo ponto, do nosso publico. É frequente, hoje, que se orientem para a simples especulação filosofica muitos daqueles que há quinze e há vinte anos se deixariam empolgar por alguma sociologia que não passasse, em realidade, de uma aliança da interpretação historica à propaganda politica e à visão profetica. Assim como os que ontem se ocupavam da literatura de ficção - e ainda aqui, indiretamente, dos espetaculos, não digo tanto dos problemas, sociais - parecem voltar-se hoje para a poesia, de preferencia para a poesia "pura".

Um critico imbuido de "slogans" marxistas não deixaria de interpretar essa nova preeminencia do "humano" e do individual sobre o social como sintomatica da alienação dominante entre intelectuais em face das perplexidades da hora presente. O que de certo modo pode ser perfeitamente justo: entretanto não cuidarei, por agora, dos motivos, ficticios ou reais, da transformação operada, receoso de me meter com eles pelos desvãos do sociologismo critico.

Não é de hoje que um ilustre ensaista francês - Julien Benda - vem sistematicamente denunciando o viés literário de muitas filosofias em voga. Se o fato é verdadeiro, não o será menos sua reciproca. E no gosto atual pela literatura chamada existencialista, eu veria um aspecto, entre muitos, mas esse especialmente famoso, de um fenomeno bem generalizado e rico em consequencias.

A consideração deste fenomeno, sugerida por dois comentarios ultimamente aparecidos às notas que aqui mesmo se publicaram a proposito das atas do Primeiro Congresso Brasileiro de Filosofia, não implica, certamente, num desconhecimento da atitude oposta. Porque a par daqueles que procuram destruir as possiveis muralhas entre as atividades distintas do espirito e da imaginação, a fim de que cada uma possa respirar por todos os poros a mesma atmosfera comum, existem sem duvida os outros, os que desejariam ver erigida em cada limite uma barreira, bem espessa e calafetada.

Apenas estou inclinado a supor que estes não existiriam facilmente sem aqueles: quer dizer que o zelo dos partidarios das muralhas seria inexplicavel sem o ardor dos amigos da indistinção e da promiscuidade. À origem dos seus contrastes encontra-se, assim, uma interdependencia bastante sensivel.

Precisamente um dos que se deram o trabalho de comentar as minhas notas à margem do Congresso de Filosofia, ou melhor, das suas atas publicadas, situa-se claramente na primeira categoria, a dos que não toleram vãos compromissos, capazes de turvar a nitida visão do filosofo e do cientista. Pertencendo à tribo relativamente pouco numerosa, entre nós, dos que não se encaminharam à Filosofia movidos pelo simples gosto de brilhar, ostentando uma erudição facil e falaciosa, o sr. Eurialo Canabrava não quer saber dos entretons que, podendo satisfazer imaginações generosas, atendem mal às mais elementares exigencias de uma logica precisa.
E se as questões esteticas, sobretudo as poeticas, despertam, não raro, seu interesse, é que, definidas, como as define, por um rigoroso contraste com as filosoficas e as cientificas, fica assentado que cada qual tem seu terreno intransferivel, cercado de solidas barreiras. Uma vez que a poesia constitui por excelencia e com exclusividade sintomatica o dominio da magia, do vago, do ambiguo, ficam automaticamente fixadas essas barreiras.

A perspectiva de uma classificação e formalização das diferentes disciplinas poderá fazer-se, livre, enfim, desse embaraço, através de um rigoroso criterio logico. No seu artigo Natureza e Historia, publicado recentemente em suplemento de A Manhã, o sr. Canabrava não deixa, é certo, de louvar o pessimismo dos que duvidam do bom exito de certos esforços de formalização das disciplinas historicas. "O sr. Buarque de Holanda,", escreve ele, "manifesta a esse proposito serias duvidas de que tal tarefa possa ser levada a cabo no dominio das disciplinas historicas. As suas observações se aplicam mais rigorosamente às tentativas ingenuas de matematização da historia, psicologia ou sociologia."

Acrescenta, aparentemente com razão, que a extensão dos metodos cientificos à historia há de obedecer a principios estrategicos diferentes dos que se impuseram no "dominio dos fatos naturais". Apesar dessa ressalva, o autor não deixa, é certo, de encarar a possibilidade de uma formalização logica da historia, e é sobre este ponto que continuo a manter as serias duvidas formuladas nas notas sobre o Congresso de Filosofia. Acredito, em realidade, que os historiadores têm a aprender do espirito que preside atualmente o trato das ciencias formais muito mais do que julgam os produtos de hipoteses onde a complexidade do passado é sujeita a uma simplificação enganadora. A desconfiança em face dos falsos conceitos é tão valida para o mister do historiador quanto o é para os modernos positivistas e fisicistas. Mas essa mesma desconfiança há de afastá-los justamente da sedução dos padrões rigidos e absolutistas, que nos permitiriam não apenas compreender o passado, como prenunciar o futuro. Só a partir dela é que o historiador poderá vencer cabalmente aqueles "efeitos desastrosos do diletantismo literario e filosofico sobre uma disciplina que não se caracteriza pelo rigor sistematico das suas conclusões".

Se a proposito de determinados fenomenos, em particular dos fenomenos de natureza estatistica e economica, é possivel um grau apreciavel de previsão; se, por conseguinte, é possivel, em parte, algum conhecimento cientifico rigoroso, a verdade é que o bom exito alcançado pela disciplina historica nesses setores só tem servido para mostrar a latitude imensuravel dos dominios onde ampliar metodos semelhantes é cair exatamente numa especie de diletantismo literario ou filosofico.

Penso, neste ponto com o sr. Eurialo Canabrava, que a assimilação da historia às ciencias suscetiveis de formalização não se dará nas condições em que a unificação da fisica e da quimica chegou a ser imaginavel, em principio e idealmente, é certo, na teoria do atomo de Bohr. Mas por outro lado suspeito da possibilidade de uma influencia absolutamente eficaz, sobre os historiadores futuros, de trabalhos como os de sociologos (Lazarsfeld a Lundberg) cujas diretrizes, a seu ver, poderiam encerrar o embrião de uma nova "estrategia" historiografica.

É bem significativo que, atraidos pelas recentes teorias sociometricas, esses mesmos autores, segundo pode notar um dos seus criticos, sempre se mostraram mais devotos do "metrum" do que sensiveis ao "socium". Eles nos ensinam a tomar medidas, não a aprender o sentido verdadeiro daquilo que procuram medir. Para isso precisam limitar necessariamente a importancia do individual, a fim de favorecerem a do tipico. Ora, a historia é por excelencia o dominio do individual, do espontaneo, do concreto. Ou, nas mesmas palavras do sr. Canabrava, "e o campo em que se movimentam as forças irracionais, os interesses e as tendencias afetivas, os valores misteriosos de variaveis desconhecidas e parametros ocultos".

Estou convicto de que a precisão nas disciplinas historicas só é verdadeiramente possivel na medida em que se abandone de todo a esperança falaz no valor daquele padrões rigidos, que no seculo podiam seduzir um Taine ou um Buckle, o que ainda neste nosso seculo encantam os partidarios de um Spengler ou de um Toynbee. A importancia de um maior rigor é afirmada com justeza no trabalho do sr. Canabrava. Para ser ainda mais justo, ele precisaria acentuar, sem deixar margem a duvidas, que o tipo de rigor requerido para as disciplinas formalizaveis não se confunde e nem se equipara ao que reclamam as pesquisas historicas, quando não queiram cair, estas, nas malhas dos mistificadores, dos astrologos ou dos fabricantes de ouro. Contudo, no fato de ter chamado atenção para a necessidade de um tratamento mais preciso dos problemas da historia permanece um dos meritos do trabalho onde o sr. Canabrava comentou as observações aqui feitas. O mesmo já não se poderá dizer, com a mesma certeza, de outro comentador, cuja exposição tentarei examinar em artigo posterior.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Questão ambiental e desenvolvimento: lições do passado

Por Sérgio Leitão

Três décadas e meia separam os anos de 1972 e 2007. Mas, no que diz respeito ao Brasil, elas estranhamente se aproximam. Em 1972 se realizou a I Conferência Mundial sobre Meio Ambiente, em Estocolmo, Suécia. A questão ambiental estava longe de merecer o destaque dos tempos atuais. O Brasil do regime militar se fez presente ao evento para afirmar o direito de alcançarmos o mesmo padrão econômico dos países desenvolvidos, mesmo que à custa da destruição da natureza.

Agora, em 2007, estamos no meio da Conferência da ONU em Bali para debater as mudanças climáticas. O Brasil cobra dos países desenvolvidos, conhecidos por serem os maiores poluidores, que façam primeiro a sua parte para resolver o problema, dizendo que o país só poderá fazer a sua quando tiver superado as "assimetrias" que deles nos separam.

Ora, estamos dizendo o mesmo que dizíamos em 1972, apenas de uma forma mais suave, usando a linguagem sutil dos nossos representantes diplomáticos. Isso não elimina o gosto amargo de que estamos fazendo uma ponte com o passado que julgávamos enterrado. É importante lembrar que, entre 1972 e 2007, elaboramos uma nova Constituição, inserimos o meio ambiente como tema central na agenda nacional e sediamos a Eco-92, nas quais foram assinadas as Convenções do Clima e da Biodiversidade.

Como justificativa desse discurso retrô, falam da necessidade de não se travar o crescimento econômico do país, a geração de riqueza e o fim da pobreza. Ou seja, voltamos a falar, como nos anos 70, que só dá para melhorar a vida dos brasileiros se fizermos o bolo crescer (metáfora usada pelo Ministro da Fazenda Delfim Netto no governo do Presidente Médici).

Dessa forma, de novo, o meio ambiente irá pagar a conta. Se já consumimos uma Mata Atlântica inteira e metade do Cerrado, agora será a vez da Amazônia ser triturada no liquidificador do desenvolvimento nacional.

Não deixa de ser estranho que não falemos das assimetrias que separam, por exemplo, os estados de São Paulo e Ceará, os bairros paulistanos do Jardim Ângela e Jardim América, que precisam e podem ser superadas não apenas com a aceleração do crescimento, mas fundamentalmente, com a aceleração da distribuição da riqueza já existente e da que está por ser criada.

Se temos tido algum progresso, está longe de nos tirar do incômodo posto de 10º pior país do mundo em desigualdade de renda, dentre os 177 pesquisados pela ONU em seu Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH), de 2007, intitulado "Combate à mudança do clima: solidariedade humana em um mundo dividido", lançado em fins de novembro, em Brasília.

Pela primeira vez conseguimos ficar entre os 70 países de maior Índice de Desenvolvimento Humano no mundo (somos o 70º), graças ao aumento da renda per capita do brasileiro de US$ 8.325 para US$ 8.402 e da taxa de expectativa de vida que cresceu de 70,8 para 71,7 anos. Porém, as nossas taxas de distribuição de renda e de mortalidade infantil continuam africanas. "Os brasileiros mais ricos têm renda até 21,8 vezes maior que os mais pobres... O índice de mortalidade infantil é de 99 por mil nascimentos entre os 20% mais pobres do Brasil", declarou Flávio Comim, assessor especial do Pnud no Brasil (Correio Braziliense, 28/11/07, página 18/Mundo).

Isso sem falar no flagelo da violência que assola as grandes cidades, no desastre da educação que nos faz passar vergonha em avaliações internacionais que medem a qualidade dos nossos estudantes, na volta do trabalho escravo e na manutenção do estado de beligerância no meio rural em razão dos conflitos fundiários.

Aliás, para quem acha que destruição ambiental rima com crescimento econômico, é bom saber que ela rima melhor com violência. O Mapa da Violência dos Municípios Brasileiros, divulgado em 2006, mostra que "entre as dez cidades mais violentas do país, quatro estão no arco do desmatamento da Amazônia", onde não existe a presença do governo e a força das frentes avançadas do capitalismo predatório podem se movimentar livremente. (ver Almanaque Brasil Socioambiental, Instituto Socioambiental, 2008, página 388).

Além disso, os benefícios advindos com o desmatamento da Amazônia são meteóricos, posto que os ganhos iniciais de renda e emprego não se sustentam e não se refletem na melhoria da qualidade de vida da população amazônica, naquilo que o pesquisador Adalberto Veríssimo, do Imazon, chama de falso desenvolvimento econômico - o "boom-colapso".

Desse modo, é significativo que o Relatório da ONU volte suas atenções para o tema das mudanças climáticas, pois se todos sofrerão com o seu advento, é certo que os mais pobres sofrerão mais.

Portanto, o Brasil tem o seu dever de casa para fazer, que é o de preparar o país para enfrentar o principal desafio político e econômico do mundo no século 21. Precisamos elaborar a nossa Política Nacional de Mudanças Climáticas para apontar as diretrizes que nortearão os rumos do país e para superar a velha dicotomia que insiste em opor crescimento econômico versus meio ambiente.

A urgência das mudanças climáticas pede outra atitude. É disso que o país e os brasileiros precisam.

Sérgio Leitão, diretor de Políticas Públicas do Greenpeace, sobre a necessidade de revermos a política brasileira de desenvolvimento para não repetir os erros do passado.  

Fonte:  Greenpeace

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Especialistas alertam que pesca artesanal está ameaçada de extinção

Por João Campos

A especulação imobiliária na costa brasileira e o modelo industrial de pesca ameaçam as comunidades tradicionais de pescadores. O alerta de especialistas foi o destaque da conferência “A Qualidade de Vida das Comunidades Pesqueiras”, durante a 62ª Reunião Anual da SBPC.

Cerca de três milhões de pessoas dependem diretamente da pesca artesanal no Brasil, segundo dados apresentados pelo pesquisador da Universidade Federal Rural do Amazonas (Ufram), Eduardo Tavares Paes. Só no estado do Pará, a atividade corresponde a 80% da produção total.

“A falta de políticas públicas para conter ataques pela via marítima e terrestre, no entanto, tem comprometido o meio de sobrevivência dessas famílias”, aponta o especialista em Pesca e Aquicultura.

Dissertação de mestrado em Ergonomia da pesquisadora Cíntia Araújo traduz em números a tendência. O estudo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) revela que, hoje, só 30% dos 42 pescadores da praia de Ponta Negra, um dos principais pontos turísticos de Natal, vivem exclusivamente da pesca.

“São comunidades que há poucas décadas sobreviviam apenas da pesca, mas que estão ameaçadas por pressões externas”, ressalta. Cíntia ainda explica que, em Ponta Negra, há muitos casos em que os próprios pais desenvolveram resistência em aceitar a opção dos filhos de se tornarem pescadores. “Obrigados a buscar moradia e meios de renda na cidade, muitas famílias já estão desacreditadas em recuperar o modo de vida tradicional”, diz a pesquisadora.

Resistência

Filho de pescador, pescador e pai de pescadores, Jorge Nunes de Souza e outras 180 pessoas enfrentam a pressão de empresários do ramo hoteleiro e da indústria naval pesqueira na praia de Itapuã, em Salvador (BA). “Não há como competir com os interesses dos donos de resorts e grandes embarcações. Estamos resistindo enquanto podemos”, comenta o homem de 52 anos, presidente da Associação Livre de Pescadores e Amigos da Pesca de Itapuã e um dos convidados para a palestra.

Jorge, mais conhecido como Seu Chico, explica que a retirada das famílias do litoral para as cidades dificulta o repasse da tradição. “Os jovens perdem contato com o mar e acabam não se interessando pela profissão dos pais”, lamenta ele, que usa canoa e remos na pesca.

Políticas

Assegurar a posse de terras às populações que tradicionalmente ocupam o litoral, limitar a atuação de navios pesqueiros e criar escolas que incluam conteúdos ligados à pesca no currículo são algumas das soluções apresentadas pelo antropólogo Roberto Kant de Lima, da Universidade Federal Fluminense (UFF), para os problemas nas regiões de pesca artesanal.

“É preciso levar em conta as necessidades de cada comunidade antes de estabelecer regras. Hoje existe uma imposição de valores”, observa o palestrante convidado para a conferência.

Apresentadora do debate, a professora da UnB Fernanda Sobral, destacou a importância de incluir as comunidades pesqueiras nos estudos das Ciências do Mar, tema da 62ª SBPC. “As ciências sociais também merecem espaço nas pesquisas marítimas. Os oceanos também seu lado humano nas comunidades que dependem de seus recursos”, observa.


domingo, 8 de agosto de 2010

História e meio ambiente: questões para um debate atual e urgente

Por Valdemir José Sonda

Nas últimas décadas do século passado, a temática ambiental começou a ser debatida com mais intensidade em todo o Planeta, tendo em vista as profundas alterações proporcionadas pelo modelo econômico de desenvolvimento insustentável que leva o nome de capitalismo. Um dos marcos políticos deste debate, envolvendo governos, organismos internacionais, organizações não-governamentais, movimentos populares, comunidades indígenas, estudantes, cientistas, entre outros, tomou corpo com a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro. Mais conhecida como ECO, 92, entre os dias 03 a 14 de junho, teve a participação de delegações de 175 países.

Como desdobramento deste evento, nos anos seguintes, mais precisamente em 1997, intelectuais, cientistas, filósofos, teólogos, escritores, ativistas das causas ambientais, dos direitos humanos, se envolveram, nos quatro cantos do planeta, dando forma àquele que talvez seja um dos documentos mais amplos e necessários do nosso tempo, que vem a ser a Carta da Terra. Organizada em quatro grandes eixos, assim está resumida: a - Respeitar e cuidar da comunidade de vida; b - Integridade ecológica; c - Justiça social e econômica; d - Democracia não violência e paz. Tais eixos estão pautados na ciência contemporânea, no direito ambiental, na sabedoria das grandes tradições filosóficas e religiosas do mundo, etc.

Em suma, a Carta da Terra, lançada no Palácio da Paz em Haya no dia 29 de junho de 2000, faz uma profunda critica ao modelo de desenvolvimento em voga, cujas mudanças climáticas, a destruição avassaladora de florestas milenares, a degradação dos rios e mananciais, a produção do lixo doméstico, industrial, dos dejetos urbanos e rurais, a gestação da fome e da miséria, a dizimação da biodiversidade, a utilização indiscriminada de agrotóxicos no meio agrícola, entre tantas outras práticas, são sintomas claros de um modelo de civilização insustentável que sempre esteve pautado não no respeito às demais e variadas espécies de vida, mas preponderantemente no lucro sobre todas as coisas. Desafiando a humanidade a gestar e desenvolver a visão de um modo de vida sustentável em nível local, regional e global, sob pena de inviabilizarmos a continuidade da vida no Planeta às futuras gerações, o documento faz um chamamento à construção de novas práticas sócio-ambientais includentes, responsáveis e prudentes em beneficio da maioria da humanidade.

Na opinião do teólogo, pensador contemporâneo e ecologista Leonardo Boff que foi um dos co-organizadores do documento, juntamente com Paulo Freire, Gorbatchev, Fritjof Capra, Vandana Schiwa, e inúmeras outras personalidades, afirma que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, teve o mérito de dizer "todos os homens" têm direitos e o defeito de pensar 'só nos homens'. Os indígenas, os escravos e as mulheres tiveram de lutar para serem incluídos em 'todos os homens'. Assim, hoje em dia, também a natureza precisa ser incluída como portadora de direitos, ou seja, enquanto mais um membro da sociedade ampliada. Nesse sentido, a Carta da Terra é um avanço em relação à Declaração Universal dos Direitos do Homem, pois amplia o conceito de cidadania política e social, para o conceito de ecocidadania, não excluindo a natureza, entre outros grupos marginalizados, como portadores de direitos.

Assim sendo, na relação entre História e Meio Ambiente, podemos trazer à tona, duas revoluções. Por volta dos anos 60 do século XX, enquanto os camponeses, estudantes, operários e intelectuais cubanos construíam linda e corajosamente a Revolução Cubana, os Estados Unidos da América do Norte, inventaram a dita Revolução Verde: um pacote tecnológico e ideológico que prometia acabar com a fome no mundo, a partir da implementação de uma agricultura técnica e comercial. A agricultura, até então camponesa, por exemplo, começou a ser tratada como coisa atrasada, anacrônica, improdutiva: coisa de jecas, índios, quilombolas, ribeirinhos e colonos sem inteligência. O incentivo ao desflorestamento, a aquisição de máquinas pesadas nas atividades agropecuárias, a utilização de insumos e venenos, os empréstimos bancários acabaram por se tornar regra, na mesma medida que a monocultura da soja, do milho e do trigo aumentavam o terreno a ser plantada, a cultura tradicional da agricultura nacional, o feijão, o arroz, por exemplo, diminuíam de espaço.

Tamanhas transformações, juntamente com a industrialização do "Brasil Ame-o ou Deixe-o" dos anos 70, ocasionaram, entre outras coisas, o inchaço de nossos centros urbanos, a favelização das médias e grandes cidades brasileiras, desestruturando demograficamente várias regiões, provocando ainda mais desequilíbrios ecológicos, através da ocupação desordenada de habitações em meio a terrenos impróprios, sem as condições infraestruturais que a dignidade humana merecem. Tanto isto é verdade, que de cada 100 brasileiros do período, 70 viviam no campo e 30 na cidade. Nos anos 90, de cada 100, 70 estavam nas cidades e 30 no campo, de acordo com dados do IBGE.

Nestes últimos 50 anos, desde os tempos da Ligas Camponesas e nos últimos 21 anos, com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra e demais setores progressistas e democráticos da sociedade brasileira, a Reforma Agrária radical é um dos mais fortes brados nacionais, capaz de permitir a volta do homem do campo para o campo. Assim, o ajuntamento de milhares de explorados, excluídos e desesperançados dando vida aos acampamentos feitos de lonas pretas, apontando para as cercas da exclusão do latifúndio retrogrado, mesquinho, violento e antiecológico, estão transformando, com sacrifício e organização, algumas regiões brasileiras.

Diante do atual contexto sócio-econômico e político, o imperialismo norte-americano tenta, e muitas vezes consegue, infelizmente, enfiar goela abaixo no sentido norte-sul, mais uma "revolução", no bojo da biotecnologia, em que os Organismos Geneticamente Modificados, os tais de transgênicos, são apontados como a salvação da lavoura.

Dessa forma, existem, hoje em dia, nitidamente, dois projetos de vida: o calcado com base no capitalismo: no pensamento, na ação, na produção e na comercialização através da agricultura convencional, a partir da grande propriedade agroexportadora; o calcado com base na solidariedade, na cooperação, na estrutura familiar, de tradição camponesa, indígena, negra e popular, a partir da pequena e média propriedade. O primeiro continua postulando o adubo químico, o inseticida, o herbicida, o fungicida, a exportação, as sementes geneticamente modificadas na monocultura da soja, da cana, dos cítricos, do feijão e do arroz. O segundo projeto, no espírito da Carta da Terra, busca recuperar o conhecimento milenar e tradicional das comunidades indígenas, dos quilombolas, dos caiçaras e seringueiros, do sertanejo, da agricultura familiar, a fim de produzir para a mesa do povo brasileiro o pão, o feijão, o arroz, a soja orgânica, as frutas, numa relação de profundo respeito com o Meio Ambiente.
Existem nestas duas modalidades projetos políticos distintos, pois a soberania de um povo é preservada a começar pelo direito a soberania alimentar contra os abutres do agronegócios consorciados com os interesses das 10 maiores empresas multinacionais do setor: Monsanto, Bunge, Cargill, Syngenta, ADM, Basf, Bayer, Norvartis + Adventis, Nestlé e Danone, que também estão de olhos aguçados em nosso patrimônio hídrico. Para finalizar, Leonardo Boff, nos diz o seguinte: "toda injustiça social é uma injustiça ecológica contra o ser humano, contra as águas poluídas, contra os solos envenenados, contra o ar empesteado".

O autor é professor do Curso de História da UNIOESTE. Mestre em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

Fonte: Unioeste

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Quem ignora sua história está condenado a repetir os mesmos erros

Por Maria da Conceição Carneiro Oliveira

Botocudos fotografados na primeira década do século XX, época de construção da ferrovia Vitória- Minas.
Desde 1500, o que os povos indígenas têm a comemorar?

No conflito para a demarcação da Terra do Sol, vem-me a memória toda a história colonial de nosso território e a de ampliação das fronteiras, assim como a da ocupação e interiorização do Brasil durante o Império e a República. Vem-me à memória à diversidade dos povos e dos biomas de nosso território.

A Mata Atlântica na região do Rio Doce foi detentora da maior biodiversidade de madeiras que nosso planeta já possuiu (pau-brasil, jacarandá, braúna, peroba, ipê, cedro, gonçalo-alves etc., além de inúmeras espécies de plantas medicinais). Hoje a mesma região não possui nem 4% da cobertura vegetal nativa.

Reparem na dimensão desta árvore da Mata Atlântica. No início do século XX, quando foi fotografada, quantos anos vocês imaginam que ela tinha? Quanto milhares delas foram derrubadas para que a ferrovia Vitória- Minas pudesse ganhar passagem e a madeira nobre da Mata Atlântica pudesse ser aproveitada para fazer os dormentes dos trilhos?

É espantosa a cobertura cínica presente em diferentes órgãos de imprensa na defesa de um discurso nacionalista de última hora sobre as demarcações das atuais fronteiras de nosso país na região de Roraima ou no debate sobre a internacionalização da Amazônia.


Para refletir, convido os leitores deste blog a resgatarem a história de violência travestida de 'desenvolvimentismo' e progresso que resultou na destruição da Mata Atlântica e na guerra sistemática contra os povos indígenas, com destaque, nesta postagem, para os botocudos - um dos vários povos que ocupavam a região que na atualidade corresponde ao território que abrange as terras do Espírito Santo a Minas Gerais (ver o texto reproduzido ao final desta postagem).

Barco à vapor na foz do Rio Doce descarregando toras de madeira no início do século XX.

Se em fins do século XIX e início do XX esse discurso era compreensível pela falta de visão de preservação e na defesa quase insana no progresso e da industrialização sem medir suas conseqüências ambientais; pelo racismo e pela crença em povos superiores e inferiores que dominavam as mentes de governos e corporações, um século depois temos dados e argumentos para combater a ideologia do progresso contínuo sem limites.

Convido-os também a observar a seqüência de fotos distribuídas ao longo desta postagem, que registram a chegada da ferrovia no começo do século XX e o auge da política desenvolvimentista em Minas Gerais nos anos JK.
Ao meu ver elas são bastante didáticas para avaliarmos os impactos em Roraima e no restante da Amazônia se o PAS for implementado e se os arrozeiros vencerem a lei e dominarem as terras dos Macuxi na TI Terra do Sol.

Convido-os também a fazer uma leitura atenta do Plano de Aceleração de Crescimento da Amazônia, ironicamente denominado de PAS (Plano da Amazônia Sustentável).

Tora de madeira da Mata Atlântica, carregada em vagão ferroviário e cartazes de JK, símbolo máximo do desenvolvimentismo no país. Medidas: 10m x 2,60 diâmetro.


Finalmente, convido-os a pensar sobre o que de fato representa a Amazônia para nós e para o mundo; a refletir sobre como as notícias que nos chegam a respeito da saída da ministra Marina Silva da pasta do Meio Ambiente e as demais sobre a temática ambiental são consumidas por nós.

A história da Companhia Vale do Rio Doce, hoje, Vale, está intimamente ligada à construção da Estrada de Ferro Vitória-Minas, durante a qual os engenheiros ingleses envolvidos em seu projeto tomaram conhecimento da existência de uma grande reserva de minério de ferro naquela região. Na foto, assentamento dos trilhos da ferrovia EFVM, entre 1906 e 1907.

Desta vez é a madeira nobre da Amazônia que está sendo derrubada à velocidade de sete campos de futebol por dia. A imprensa corporativa como sempre vai noticiar até sangrar, como sangram os rios contaminados de mercúrio e outros metais pesados, envenenados pela mineração. Como consumimos estas notícias?
Durante 50 anos essa quantidade de fumaça foi sendo lançada ao longo do Rio Doce.

Será que esperaremos o último Macuxi resistente à invasão da Terra do Sol ser abatido? Quando a saída de Marina não render mais viúvas honestas e desonestas lamentando-se na imprensa, (apesar de nos cinco anos em que ela ocupou o cargo nunca ter tido voz nesta mesma imprensa) a destruição secular da Amazônia não vai cessar.
Carvoarias no Vale do Rio Doce, matam os trabalhadores, matam as florestas para gerar energia para a mineração.
Pobre floresta, não tem nem 13 mil anos de história e muito possivelmente não resistirá aos próximos cem anos se nos portarmos apenas como consumidores de notícia em tempo real.

Para os que acham que a autora desse blog virou uma 'ecochata', façam as contas: a tecnologia destrutiva dos engenheiros ingleses da Pré-Vale era ínfima perto da que temos hoje. Em menos de cem anos a Mata Atlântica na região de Minas foi reduzida à carvão e dormentes, o Rio Doce assoreado, os Botocudos extintos.

Você ainda acha que aqueles que questionam os caminhos que o Estado está tomando em relação à ocupação Amazônia, a permissividade da sociedade diante da violência estúpida contra os povos indígenas, quilombolas vítimas da ocupação desertificadora de suas terras e das barragens e hidrelétricas destruidoras de nossos rios são manifestações de um romantismo fora de moda? De uma sonhadora anti-progresso? De uma expatriada que não ama o seu país?

Eu diria que românticos são aqueles que acham que podemos consumir a tudo e a todos como o simpático pac-man da pré-história dos videogames e ainda acreditarem que o planeta não reagirá.

Está acionado o relógio que marcará o fim de nossa pequena passagem pelo planeta. Pobre Amazônia, pobre futuras gerações da pobre espécie humana.
Revejam a foto anterior da Foz do Rio Doce por onde embarcações transportavam as toras de madeira no início do século XX. Comparem com a foto do Rio Doce na atualidade: completamente assoreado nas proximidades de sua foz.




200 anos da guerra contra os 
botocudos 
Por SÉRGIO DANILO PENA e REGINA HORTA DUARTE

Dois eventos importantes da história brasileira ocorreram no dia 13 de maio. Um deles é pouco conhecido e não é motivo para comemoração

DOIS EVENTOS importantes da história brasileira ocorreram no dia 13 de maio. O mais famoso e justamente festejado ocorreu em 1888: a assinatura, pela princesa Isabel, da Lei Áurea, que extinguiu a escravidão no Brasil. O outro, bem menos conhecido, aconteceu 80 anos antes e também envolveu um príncipe, mas não é nenhuma causa para comemoração.
Em 13 de maio de 1808, exatamente há 200 anos, o príncipe regente dom João (bisavô da princesa Isabel) assinou uma carta régia mandando "fazer guerra aos índios botocudos". O que levou dom João, que fugira de um conflito europeu, a iniciar uma nova guerra quase imediatamente após chegar ao Brasil? Quem eram os botocudos, percebidos como ameaçadores ao ponto de motivarem uma guerra contra eles?
O nome "botocudo", derrogatório e ofensivo, foi dado pelos portugueses a diversos povos histórica e geneticamente heterogêneos do grupo lingüístico macro-jê que habitavam o nordeste de Minas Gerais, o sul da Bahia e o norte do Espírito Santo. Em comum, tinham o hábito de usar discos de madeira no lábio inferior e nos lóbulos das orelhas para expandi-los de forma peculiar.
As rolhas dos barris de vinho português eram chamadas botoques -origem do cognome botocudos. Nômades e caçadores-coletores, caracterizavam-se por extrema belicosidade.
Os botocudos não toleravam a presença dos lusos invasores e usavam táticas de guerrilha para atacar fazendas, matar colonos e aterrorizar todos os que se aproximassem de seus territórios. A carta régia os acusa de "praticar as mais horríveis e atrozes cenas da mais bárbara antropofagia, ora assassinando os portugueses e os índios mansos por meio de feridas, de que sorvem depois o sangue, ora dilacerando os corpos e comendo os seus tristes restos". Hoje, a maioria dos estudiosos acreditam que esse canibalismo pode nunca ter ocorrido. Por que a guerra contra eles? Pelo domínio do território que ocupavam.
Na história da colonização portuguesa e império os Botocudos foram descritos como ferozes e sanguinários. Na foto posam ingenuamente junto com os engenheiros da ferrovia e deixam registrado para a história os 'últimos exemplares' dessa etnia, hoje extinta.

Com a exaustão crescente dos depósitos auríferos em Minas Gerais, os portugueses se voltavam para a exploração da terra no interior do país. A chegada de dom João agudizou a situação: eram necessários víveres para alimentar a corte e estradas para transportá-los. Surgiram, assim, novos impulsos para a expansão das fronteiras da civilização.

As terras brutas do nordeste de Minas, então cobertas de mata atlântica verdejante, eram o alvo e o prêmio, mas elas também abrigavam os irredutíveis botocudos. De certa maneira, e com alguma liberdade de comparação, o nordeste de Minas era então o que a Amazônia é nos dias de hoje.
Obviamente, os portugueses venceram a guerra, usando pólvora e aço.

Os índios que sobreviviam eram escravizados. Também foram usadas armas biológicas -roupas e cobertores impregnados de vírus de varíola eram deixados na floresta para uso e contaminação dos índios.
Como escreveu o barão Johann Jakob von Tschudi, naturalista suíço que visitou a região por volta de 1860: "Os portugueses adotaram os meios mais infames para atingir esse objetivo. [...]
Nenhuma nação européia se rebaixou tanto para manchar seu nome e sua honra como Portugal". Mas ele adiciona: "Nos últimos tempos, apesar de já existir uma Constituição brasileira, que, infelizmente, tem sido implementada de forma muito precária, a guerra de destruição contra os índios na província de Minas Gerais ainda continua".
Hoje, os botocudos não existem mais. Seus descendentes, os índios krenak, somam poucas centenas de indivíduos. Tampouco há florestas verdejantes no nordeste de Minas. Predomina o semi-árido e a região é uma das mais pobres do Estado.
Ensina a sabedoria popular que quem ignora sua história está condenado a repetir os mesmos erros. A guerra contra os botocudos é um episódio importante da nossa história, com mensagens relevantes para a moderna sociedade brasileira.
 
Assim, no dia 13 de maio, ao celebrar a abolição da escravatura pela princesa Isabel, também devemos nos lembrar da carta régia de seu bisavô, o futuro dom João 6º, que perseguiu, escravizou e matou botocudos, levando à virtual extinção de um conjunto de bravos povos indígenas.


 SÉRGIO DANILO PENA, é professor titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), e  REGINA HORTA DUARTE , é professora do Departamento de História da UFMG, são professores residentes do Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares da UFMG no período 2008-2009.

FONTE: História em Projeto