segunda-feira, 12 de julho de 2010

Entrevista com o Professor José Augusto Drummond sobre História Ambiental

O entrevistado da 6ª Edição da Revista História é José Augusto Leitão Drummond. Em entrevista instigante, Drummond, referência e pioneiro nos estudos de História Ambiental no Brasil, aborda problemáticas e perspectivas dessa corrente na passagem do século XX para o XXI.

Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, fez Mestrado em Environmental Science na The Evergreen State College (EUA) e Doutorado em Land Resources na University of Wisconsin(EUA). Atualmente é Coordenador de Pós-Graduação do Centro de Desenvolvimento Sustentável (CDS) da Universidade de Brasília.

Entre os temas de interesse destacam-se: políticas públicas e dos recursos naturais; desenvolvimento sustentável; usos e conflitos em torno dos recursos naturais; políticas ambientais; Amazônia; unidades de conservação; história ambiental.

"O Amapá nos tempos do Manganês - um estudo sobre o desenvolvimento de um estado amazônico (1943-2000)", "Amazônia dinamismo econômico e Conservação ambiental" e "Devastação e Preservação Ambiental no Rio de Janeiro" estão entre algumas de suas principais publicações, além do importante artigo História Ambiental: Temas, Fontes e Linhas de Pesquisa

História Agora - Professor, o senhor é reconhecido como um dos pioneiros dos estudos em História Ambiental no Brasil. Qual foi o seu percurso e como entrou em contato com essa nova área?

Drummond - Em 1986-1988, fiz um curso de mestrado em Environmental Science num pequeno “college” (The Evergreen State College), no estado de Washington, EUA. Eu tinha mais de dez anos de formado (em ciências sociais) e já dava aula em universidade há oito anos. Estava em busca de uma renovação temática. O meu orientador foi Thomas B. Rainey, um historiador que, aos 50 e tantos anos de idade, estava transitando da história política para a história ambiental (área ainda nova nos EUA, naquele momento) e trouxe os seus aprendizados e leituras recentes para a sala de aula e para a nossa interação. O conteúdo geral do curso estava longe de ser de história, e muito menos de história ambiental, mas, como ele era o coordenador do curso e oferecia diversas disciplinas, imprimiu uma marca “histórica” ao curso. De minha parte, eu nunca ouvira falar da história ambiental. Apesar de não ter graduação em história, o meu “viés histórico” pessoal me preparou para tirar vantagem desse componente que o meu orientador promovia com tanta competência no curso.

Uma disciplina específica que cursei teve forte efeito. A pedido de alguns alunos, inclusive eu, Rainey ofereceu um seminário especial sobre história ambiental, no verão de 1987, como disciplina optativa. Esse foi o meu “mergulho súbito e profundo” na história ambiental, embora tivesse lido alguns autores relevantes nos semestres anteriores. Em algumas poucas semanas li e debati numerosos autores contemporâneos de HA, como Alfred Crosby (Ecological Imperialism), Donald Worster (Dust Bowl), Warren Dean (Brazil and the Struggle for Rubber), Richard White (Land Use, Environment and Social Change), Roderick Nash (Wilderness and the American Mind), Frederick Turner (Beyond Geography), Stephen Pyne (Fire in America), Joseph Petulla (American Environmental History), William Cronon (Changes in the Land), Michael Smith (Americans and their Forests), além de alguns clássicos, como Frederick Jackson Turner (vários textos curtos) e Walter Prescott Webb (The Great Frontier). Quase tudo que li desde então e que cabe no escaninho da HA é escrito por esses autores, por autores que eles citam ou por autores associados a eles.

Das leituras desses livros (todos muito bons e alguns excelentes) e dos debates em torno deles escrevi um paper para a disciplina, sobre o replantio da Floresta da Tijuca, paper este que acabou se tornando a pedra fundamental da dissertação que escrevi no ano seguinte (sobre os parques nacionais do Rio de Janeiro). O capítulo da tese sobre a Tijuca virou a base de um artigo que publiquei em 1988 em Estudos Históricos. As anotações de leitura feitas na mesma disciplina ajudaram na composição de um artigo “historiográfico” publicado em 1991, na mesma revista. A disciplina com Rainey foi, portanto, prolífica, gerando dissertação e dois artigos e abrindo todo um novo campo de interesse para mim. Esses artigos de Estudos Históricos dão a alguns a idéia incorreta de que um não-historiador como eu possa ser um “pioneiro” da história ambiental no Brasil.

HA - Qual foi a recepção do ambiente acadêmico brasileiro no final da década de 80 para essa abordagem da história?

Eu não sou a pessoa certa para responder essa pergunta, pois no meu retorno ao Brasil, depois do mestrado, continuei o meu trabalho no Departamento de Ciência Política, na UFF. Não fiz grande esforço em prol da história ambiental e mesmo a minha formação “ambiental” mais ampla no curso de mestrado ficou um tanto subutilizada, já que havia outras demandas a serem atendidas. Continuei lendo, por conta própria, autores de história ambiental de língua inglesa e apliquei a “lente” da história ambiental a leituras antigas e novas sobre o Brasil (Freyre, Prado Jr., Oliveira Vianna, Alberto Torres, Darcy Ribeiro, Holanda, Josué de Castro, as narrativas de viajantes etc.), mas isso não se traduziu em muitas aulas ou em quaisquer novos escritos. Traduzi o livro citado de Frederick Turner (traduzido como O Espírito Ocidental contra a Natureza), publiquei uma resenha sobre o livro de Dean sobre a borracha, organizei um dossiê de meio ambiente e história para Estudos Históricos, sugeri a algumas editoras a tradução de alguns livros mencionados acima. Pouco mais fiz do que isso pela “causa” da história ambiental nos anos imediatamente depois de 1988.

A minha “roda” pessoal de acadêmicos brasileiros interessados em questões ambientais só incluía um historiador, José Augusto Pádua, com quem tive um intercâmbio muito rico. No entanto, no princípio e nos meados da década de 1990, ele não tinha uma produção sistemática sobre história ambiental. Embora investisse muito em leituras sobre o assunto, ele passou um bom período fora do circuito acadêmico, até concluir a sua tese de doutorado, que se transformou no excelente livro Um Sopro de Destruição. Os demais integrantes da minha mencionada “roda” eram sociólogos, economistas, antropólogos, cientistas políticos, geógrafos, planejadores, muito mais interessados em questões contemporâneas ou atuais, nas quais a aplicação do viés da história ambiental era muito rara.

Ao escolher o meu curso de doutorado, que iniciei em 1991, “fugi” um tanto da história ambiental, pois ingressei em um curso sobre recursos naturais e desenvolvimento, na University of Wisconsin. Apesar de ter feito uma disciplina de geografia histórica com William Denevan e de ter assistido várias palestras de William Cronon, fiz uma tese muito mais parecida com a sociologia do desenvolvimento, com forte viés “contemporâneo”. Estudei um empreendimento minerador no estado do Amapá que começou na década de 1940 e mal chegou a completar cinco décadas de funcionamento. Embora muito mais “durável” do que a grande maioria dos empreendimentos produtivos da Amazônia, é um objeto de “vida curta”. Ainda assim, tentei incorporar na tese alguns insights extraídos da história ambiental.

Por que “fugi” da história ambiental? Talvez tenha sido para “reaquecer” a minha formação original de cientista social interessado em políticas de desenvolvimento. De outro lado, se a “recepção” da história ambiental nos meus circuitos pessoais e profissionais mais próximos tivesse sido mais ampla logo depois de 1988, talvez eu tivesse optado por fazer um doutorado em história ambiental – e tive oportunidade para tanto. Para melhor ou para pior, continuei a ter um pé e meio fora da área acadêmica de história.

Essa pergunta sobre a recepção da história ambiental no Brasil poderia ser respondida com mais proveito, portanto, em entrevistas com José Augusto Pádua, Regina Horta Duarte, Gilmar Arruda, Arthur Soffiatti e Lise Sedrez, entre outros, historiadores que escreveram teses e/ou dissertações de história ambiental e que estão produzindo no campo. Christian Braanstrom e Shawn Miller, norte-americanos, estudam diligentemente a HA do Brasil e poderiam também dar depoimentos interessantes.

HA - Conte-nos um pouco da formação do Centro de Desenvolvimento Sustentável da UNB? Há um lugar para a História Ambiental nessa proposta? Quais são suas atuais pesquisas?

O CDS foi criado em 1995 por um grupo de professores da UnB interessados em investir nas questões situadas na interface do social com o natural. A adoção do ‘desenvolvimento sustentável’ como ‘tema definidor’ do centro resultou de um consenso entre eles, assim como a área de concentração principal (política e gestão ambiental). Não participei do grupo fundador e acho que nenhum historiador da UnB fez parte dele. Muito mais tarde, quando fui convidado a ‘aderir’ ao CDS, foi muito mais pelas temáticas citadas no meu Lattes do que pelos meus investimentos na história ambiental. Como disse antes, tenho vários interesses (principalmente unidades de conservação e empreendimentos produtivos de recursos naturais) que distintos da história ambiental e foi com eles que criei o meu nicho no CDS, a partir de 2001, quando iniciei uma fase de quase três anos como pesquisador associado. Mais recentemente, com apoio de um pós-doutorando que é historiador, tenho conseguido imprimir um conteúdo parcial de HA às minhas aulas, orientações e publicações. No entanto, o peso específico disso entre professores e alunos e dentro da produção do CDS é ainda bem reduzido.

HA - Professor no artigo “A História Ambiental: temas, fontes e linhas de pesquisa” o senhor afirma que: “Mas a minha ambição maior é convencer alguns historiadores e outros cientistas sociais a incorporar variáveis ambientais aos seus estudos sobre a sociedade humana.”, passados quase vinte anos o senhor acredita que essas variáveis ambientais foram incorporadas pela historiografia e pela produção das ciências sociais?

Não, ou quase nada. Ainda é um tabu para os cientistas sociais admitir que as sociedades humanas possam ser condicionadas, conformadas, direcionadas ou determinadas por qualquer força da natureza. Ainda recebo reações azedas e mesmo irônicas a essa sentença transcrita na pergunta, escrita há quase 20 anos. As reações mais fortes vêm daqueles convencidos sobre a “imunidade humana” à natureza – para eles, os humanos ficam fora e acima da natureza. Estes são “humanistas” extremos, no sentido de privilegiar uma espécie animal tão recente tão recente como a dos humanos e colocá-la acima de todo e qualquer fator natural, num planeta de 4,5 bilhões de idade e num processo evolutivo de muitas centenas de milhões de anos. Num aparente paradoxo, no entanto, recolho reações de espanto e censura também entre aqueles que, um tanto pos-modernamente, propõem que a cultura humana está totalmente “dentro da natureza” e que, assim, acreditam que tudo que os humanos fazemos é natural. Para eles, isso tira o sentido da minha proposição de que variáveis naturais devem ser levadas em conta no estudo das sociedades humanas. Para esses críticos, religião, sistemas de parentesco, escrita e arte são coisas tão naturais quanto pedras, água, plantas e bichos, não se colocando, portanto, a distinção implícita na minha proposição. Há ainda os criacionistas, para quem natureza e cultura são criações divinas que não podem nem devem ser estudados nas suas influências mútuas, pois isso negaria o papel e os propósitos do criador. Francamente, mesmo discordando frontalmente dessa terceira posição, acho que ela é muito mais coerente do que as outras duas... Ou seja, essa é uma questão espinhosa sobre a qual as polêmicas nunca cessarão.

HA - Nesse sentido, e ainda remetendo ao seu artigo, a proposta da História Ambiental não seria apenas o estudo de um aspecto da vida humana, que seria a relação entre o homem e a natureza. Em nosso entender, a História Ambiental propõe que o percurso de uma sociedade no tempo não pode ser dissociado do ambiente que a cerca e, dessa forma, toda história deve ser não apenas social, como também ambiental. Estamos corretos?

Sim, é isso que sustento, embora não defenda um fundamentalismo para a HA. Há vários aspectos da aventura humana que podem ser tratados sem rígidas ”ancoragens” ambientais.

HA - Como o senhor vê a História Ambiental hoje no Brasil? É um campo consolidado?

Em maio de 2008 ocorreu em Belo Horizonte o primeiro grande encontro acadêmico de história ambiental no Brasil, organizado por Regina Horta Duarte, da UFMG, uma das lideres da disciplina no Brasil. Não sei a contagem exata, mas houve várias dezenas de papers e umas 150 pessoas presentes, embora se deva levar em conta que o evento reuniu historiadores ambientais da América Latina e do Caribe. Tive a grata satisfação de perceber durante o evento uma certa “ebulição” sobre o assunto, já que ele atraiu profissionais com investimentos antigos, alguns “visitantes” eventuais (como eu) e numerosos jovens estudantes de pós-graduação e graduação que se dedicam integralmente à HA.

Fiz a palestra de abertura do evento, tentando colocar o dedo no pulso do “estado da arte” da história ambiental no Brasil. Tive o cuidado de não ler a programação do evento antes de preparar a palestra, para não influenciar as minhas escolhas de quem seria mencionado, mas constatei que quase todos os autores brasileiros contemporâneos que mencionei estavam na platéia, alem de alguns estrangeiros. No entanto, havia também profissionais de quem eu nunca ouvira falar. Ou seja, embora talvez ainda não consolidado, o campo da história ambiental está certamente em crescimento.

HA - Em relação às fontes e métodos, o historiador ambiental trabalha com fontes tradicionais, mas também vai a campo, trabalho pouco afeito aos historiadores convencionais. Que instrumentais teóricos o historiador deve levar consigo e o que ele deve procurar no campo que interesse à História Ambiental?

Repito o que escrevi naquele artigo de 1991 – o instrumento “teórico” principal que o historiador ambiental leva ao campo é a capacidade de ler as marcas da ação humana na paisagem. No entanto, principalmente quando se trata de paisagens não-urbanas, isso não é algo que se aprenda a fazer no campo da história ou das ciências humanas ou que se documente com cartas, mapas e decretos. Aprende-se a fazer essa leitura com um conjunto de ciências naturais e da vida – geologia, biologia, ecologia, geografia física etc. Em alguns casos, a arqueologia também ajuda. Atividades humanas – extração de plantas, agricultura, caça, retirada de madeira, represamento de rios, mineração, disposição de resíduos etc. – deixam marcas por vezes bastante óbvias e duráveis nas paisagens, mas a sua visibilidade não é necessariamente fácil para cientistas humanos, que por isso precisam se preparar para tanto.

A tarefa fica mais fácil quando existe documentação – linguística, escrita, arqueológica, oral-mitológica e até genética – que informe sobre as atividades humanas independentemente de as marcas na paisagem existirem ou serem visíveis. Se sabemos, por exemplo, que uma ferrovia foi construída numa determinada data, num determinado lugar, podemos supor, com alto grau de segurança, que ocorreu uma série de efeitos sobre as paisagens – desmatamento, construção de estradas vicinais, pontes e túneis, incêndios, uso de lenha como combustível, além da retirada de cargas locais (minérios, madeira) e da entrada de outras cargas (materiais de construção, alimentos, utensílios, ferramentas etc.). Talvez um cronista ou um jornal local e o memorial da obra confirmem uma ou mais dessas hipóteses. Os manifestos de cargas da ferrovia – se existentes - podem ajudar a confirmar ou negar o intercâmbio de bens. Em um ambiente urbano, o aterro de um manguezal para construção de bairros e portos pode ter deixado poucas marcas “naturais”, mas documentos de planejamento governamental e jornais podem ajudar a confirmar a alteração na paisagem. Um trecho de rio urbano retificado e canalizado teve um dia um leito sinuoso agora desaparecido, mas que talvez tenha ficado registrado nos em pinturas dos artistas ou fotografias. Assim, o historiador ambiental que vai ao campo ainda deve continuar atento aos documentos capazes de confirmar e até enriquecer o que consiga deduzir das marcas físicas nas paisagens.

Como disse em outro texto, é útil também para a HA um conhecimento seguro das floras nativas, com base na biologia e na ecologia. Não foi por acaso que Warren Dean cursou um mestrado em botânica tropical antes de se aprofundar na sua pesquisa sobre a destruição da Mata Atlântica. O conhecimento da flora nativa permite ler melhor as marcas humanas na paisagem, pois que os humanos tipicamente interferem direta e vigorosamente nela e alteram os seus aspectos naturais – densidade de biomassa, composição de espécies, fisionomia, extensão – e a fauna que vive nelas. Poucos ecossistemas terrestres ou aquáticos ficaram imunes a influências humanas. A ação humana é quase onipresente. Ainda assim, ela só pode ser adequadamente medida se praticarmos uma “supressão metodológica” dos humanos, perguntando: para onde iria a flora nativa sem a interferência humana? Só assim teremos parâmetros para avaliar o “peso” e o papel reais dos humanos na conformação e na mudança das floras regionais. Isso porque a criatura humana fez uma aparição recentíssima, se considerarmos a enorme duração dos processos geológicos e biológicos que moldaram a biosfera.

Outra consideração “teórica” relevante vem das mesmas ciências mencionadas – o abandono do chavão do “equilíbrio ecológico” (tão caro a muitos ambientalistas bem intencionados). O chamado “equilíbrio ecológico” tem muito pouco de equilíbrio, pois geosfera, biosfera e atmosfera têm sofrido transformações moderadas e radicais, há eons, independente de artefatos humanos como a agricultura de queimada ou a bomba atômica - rachaduras, deslocamentos e colisões dos continentes, colisões com asteróides, eras glaciais, subidas e descidas dos níveis de temperatura e dos oceanos, mudanças na composição da atmosfera, o próprio surgimento da vida e de diferentes formas de vida e as numerosíssimas extinções de espécies. Assim, na história do planeta ocorrem tanto a continuidade quanto a mudança, independente da cultura humana, e muitas dessas mudanças foram radicais.

Por isso, os historiadores ambientais não devem exagerar a capacidade humana de alterar a natureza, embora o Homo sapiens seja um animal dotado de uma capacidade singular de produzir alterações e seja suscetível aos efeitos de sua própria capacidade modificadora. Temos, como espécie, por exemplo, um apego aos ecossistemas em desequilíbrio, apego refletido na nossa agricultura (mesma nas suas formais mais “simples”) e na seleção dos nossos principais animais domésticos (cavalos, bois, ovelhas, cabras, burros, jumentos, lhamas, camelos, búfalos, renas), que são basicamente herbívoros que comem capins, gramas e ervas de pradarias, campos e savanas. A cultura humana é, pois, aliada histórica dos ecossistemas de flora aberta ou de ecossistemas artificialmente mantidos em desequilíbrio, e a prova cabal disso está no seu portfolio de plantas e animais prediletos e nas paisagens majoritariamente abertas e homogêneas que ela produz.

HA - Do ponto de vista metodológico e teórico, A disciplina História Ambiental pode ser estendida até o tempo presente?

Assim como existe uma história política, ou econômica, ou social contemporânea, não vejo porque a história ambiental não possa ser contemporânea também. Uma dificuldade do “tempo curto” pode ser a impossibilidade de atribuir certas mudanças ambientais e sociais a causas específicas, mas isso parece ser comum a outras histórias contemporâneas. O importante é levar em conta que certas mudanças na natureza obedecem a cronologias (tempo geológico, tempo biológico) pouco ou nada relacionadas com o tempo das culturas humanas. Tenho lido afirmações enunciadas com uma certeza – ou será desconhecimento? - que me choca quando esse cuidado com os tempos diferenciados não é adotado.

Um exemplo: está se tornando um lugar comum afirmar, sem qualquer evidência, que certas populações “tradicionais” são responsáveis pela “criação de espécies”, só porque elas moram num mesmo lugar há 50 ou 500 anos e lidam com uma parte ínfima de sua flora, e quase exclusivamente para fins utilitários. Os “tradicionais” aparecem assim gigantescos, substituindo o processo evolutivo. O fato é que os humanos pouco podem fazer nesse campo da “criação” de espécies. As suas opções são: (1) extinguir espécies criadas pelo processo evolutivo, (2) redistribuir/transportar espécies de um lugar para outro (‘reembaralhando’ as formas de vida criadas pelo mesmo processo evolutivo) e (3) “deixar em paz” as espécies existente nos locais onde moram. Se forem agrícolas e pecuários, talvez consigam chegar a uma quarta possibilidade - desenvolver variedades de uma parcela ínfima das espécies criadas pelo processo evolutivo, ou seja, das espécies domesticadas de interesse estrito para a própria humanidade. No entanto, “criar” de fato uma espécie (1) exige um tempo que não é medido nem em anos, nem em décadas, nem em séculos, nem em milênios (escala máxima de tempo que seja significativa para a cultura humana registrada) e (2) requer o controle sobre processos que nem de longe estão ao alcance de qualquer cultura humana. Talvez as modernas empresas de biotecnologia sejam exceção, pois que aprenderam a pisar no acelerador para aumentar a velocidade das lerdas mudanças genéticas, de forma a aproximá-las das ágeis demandas culturais. Os resultados desse ajuste são os OGMs, que se parecem mais com novas espécies do que qualquer outra coisa de que eu conheça. Porém, essas empresas nada têm de tradicionais...

HA - O senhor mencionou em seu supracitado artigo, que a História Ambiental surge também como uma demanda da sociedade que então adquiria uma consciência ecológica. O senhor avalia que a produção da História Ambiental já atende essa demanda? Quais foram os frutos políticos e sociais que a História Ambiental no Brasil colheu?

Quando escrevi isso, eu estava empolgado com a rapidez com que crescia a preocupação com o meio ambiente em vários setores da sociedade e do governo brasileiros. Bastaram alguns poucos anos a mais, porém, para mostrar que a questão ambiental passava naquele momento por um crescimento exponencial que acabou se suavizando, já que outras questões mobilizaram a atenção e a energia dos cidadãos – inflação, desemprego, criminalidade, educação, dívida externa, saúde, eleições regulares etc. Acabou ocorrendo o que é normal em sociedades complexas como a brasileira – uma questão que parece destinada a ser de preocupação geral se torna uma questão “setorial”.

No entanto, é preciso reconhecer que o “setor” que no Brasil se preocupa com o ambiente é grande, visível, diversificado e até bem articulado. Não obstante, ele perdeu a capacidade de “empolgar” as maiorias, de “monopolizar” agendas e de influenciar governos. Isso está mais claro do que nunca na coalizão que elegeu e sustenta Lula, a mais francamente “em-favor-do-desenvolvimento-a-qualquer-custo” desde a coalizão que deu apoio a Ernesto Geisel. A única coisa “sustentável” que interessa à coalizão lulista é sustentar altas taxas de crescimento do PIB. Note bem: essa coalizão tem apoio maciço do eleitorado brasileiro. Ela não “traiu” a causa ambientalista – muito pelo contrário, revelou o seu tamanho real, que infelizmente é muito menor do que eu gostaria que fosse. É demais esperar que a história ambiental ou que a produção de qualquer ramo da ciência tenha papel central na reversão desse quadro, mesmo a médio prazo. Da maneira que estão as coisas, a nossa enfraquecida “frente ampla” ambientalista terá que se empenhar para virar o jogo e retomar parte da força e da capacidade de influenciar que ela teve há cerca de 20 anos.

HA - Professor, falemos da Amazônia. Recentemente a Ministra Marina Silva pediu demissão do seu cargo no Ministério de Meio-Ambiente em função, dentre outras coisas, da expansão da fronteira agrícola na Floresta Amazônica. Há ainda a questão do desmatamento ilegal e do crescimento desordenado das cidades. Como o senhor vê a atuação do Estado Brasileiro para a resolução ou contenção desses problemas e conflitos? Na Amazônia, há ainda a questão indígena e o direito ao acesso à terra. O senhor pensa que as reservas indígenas podem contribuir para a preservação da floresta? Ou essas reservas trazem novos problemas, inclusive ambientais?

Marina Silva fez e continua a fazer parte da citada coalizão “desenvolvimento-a-qualquer-custo” que elegeu e que dá apoio a Lula. Ela era o elo mais “verde” – ou o único elo “verde” – dos ocupantes de cargos dessa coalizão. Ela sabia dessa sua excepcionalidade e resolveu enfrentar um jogo muito difícil. Isso é admirável, mas ela errou totalmente ao fazer do seu ministério um “ministério não-governamental”, que preferia conversar endogenamente consigo mesmo e dar as mãos às ONGs que a apoiavam do que dialogar com os ministérios de grande musculatura e que financiam ou apóiam as atividades mais fortemente impactantes do meio ambiente. Errou também ao subordinar a questão ambiental de forma fundamentalista à questão social, desprezando a importância da proteção da biodiversidade pelo seu valor intrínseco e condicionando-a à melhoria das condições de vida de certas parcelas da população rural brasileira. Ficou falando sozinha.

Essa digressão serve (1) para mostrar que o estado não tem tido posição monolítica na questão ambiental e (2) para sugerir que o viés escolhido por Marina Silva reduziu substancialmente na esfera política o peso específico nada desprezível que o conjunto dos ambientalistas tem na sociedade brasileira. A gestão Marina propiciou um retrocesso na política ambiental nacional que levará uma década para ser recuperada, pois trivializou a questão ambiental (igualando-a à questão social), assumindo um tom outsider de fórum social mundial encravado na administração Lula, ao invés de superar a adolescência política e pisar com firmeza na arena propriamente governamental. É quase trágico que isso tenha sido conseguido ao custo do desgaste profundo, se não da liquidação, de um ícone do movimento ambientalista – mulher, amazônida, pobre, não-branca, forjada nas lutas sociais contra o desmatamento na Amazônia.

Pensando em escala temporal mais ampla, a Amazônia tem vivido uma oscilação pendular no imaginário nacional dos últimos 100 anos da nossa história, aproximadamente – décadas de esquecimento (menos pelos próprios amazônidas, é claro) são seguidas por alguns anos de preocupação exacerbada. Desde que a erosão da biodiversidade se tornou uma questão premente na opinião pública de alguns países desenvolvidos, em meados dos anos 1980, o Brasil, grande detentor de biodiversidade, e a sua parcela amazônica, em particular, viraram foco de atenção internacional. Essa “pressão internacional” colocou de novo, e desta vez mais duradouramente, a Amazônia como questão premente para os brasileiros em geral. Desde o início desse ciclo e até hoje houve brasileiros que passaram a se preocupar com a Amazônia no sentido de moderar o uso dos seus recursos para fins produtivos, preservar trechos dela, aproveitar oportunidades de usar a floresta sem destruição (por exemplo, com turismo, pesquisa científica, bioprospecção, aproveitamento sustentável da biodiversidade etc.). Mas houve também correntes que, aparentando levar em conta o apelo internacional e nacional de uma Amazônia ‘preservada’, sempre colocaram o imperativo de que, mesmo com preservação e com uso moderado dos seus recursos, a região é destinada a nada menos do que alavancar o país para a condição de grande potência desenvolvida, com base na exploração intensiva dos seus recursos naturais. É esse segundo grupo – que, aliás, tem integrantes fortes na própria Amazônia - que prevaleceu na coalizão pró-Lula e nos seus governos.

Tento explicar melhor a importância do ponto que levantei antes - o da subordinação do ambiental ao social. Todos os indicadores sociais da população brasileira vêm melhorando desde 1995. Alem disso, a aposta da coalizão no poder no “espetáculo de crescimento” a altos percentuais se concretizou (embora menos espetacularmente do que o desejado...). Os demais ministérios se valeram dessa oportunidade para provar que era possível e até desejável ignorar as “restrições” ambientais e manter o MMA no congelador, sob pressão cerrada da Casa Civil para liberar licenças ambientais. Para que “frear” o tão desejado crescimento com restrições ambientais, se ele está gerando benefícios generalizados para a população? - perguntam ruralistas e aliados. Aliás, o próprio ressurgimento dessa posição retrógrada e equivocada – cuidar do meio ambiente atrasa o crescimento – e a sua prevalência neste momento são produtos diretos da era Marina, que à sua moda também subordina a proteção do ambiente natural ao bem-estar da sociedade. E assim se foi Marina e assim continuam a avançar desordenamente as frentes agrícolas e pecuárias na Amazônia...

As terras indígenas se baseiam em um preceito constitucional que considero uma grande conquista da sociedade brasileira. Se elas têm efeitos favoráveis à manutenção das floras amazônicas, essa é uma questão distinta. Mesmo que os indígenas “detonassem” o ambiente natural de suas reservas, estariam dentro do seu direito histórico de povos desapossados territorial, cultural e espiritualmente. Sou contra a alegação de que aqueles que tenham ou aparentem ter cuidado especial com a natureza mereçam direitos especiais. No entanto, os dados que conheço indicam que, sim, as terras indígenas têm contribuído para a preservação das florestas amazônicas, pelo menos no curto e médio prazos. Terras indígenas criadas mais recentemente em áreas de flora nativa em bom estado têm em geral mantido essa flora em melhor estado do que as terras nas suas vizinhanças.

Por último, tratarei brevemente da questão do acesso à terra na Amazônia. Eis aí um tema - acesso à terra - que deverá dar muito pano para muitas mangas dos nossos historiadores ambientais, quer estudem o passado ou o presente, quer estudem a Amazônia ou qualquer outra região do Brasil. A precariedade da documentação e da efetividade dos direitos de propriedade dos “pequenos” agricultores, aliada à grande abundância de terras pelo menos medianamente aptas para a agropecuária, fazem de pequenos e grandes agricultores brasileiros esbanjadores dos recursos – solos, águas, flora, fauna etc. -, cada um na sua escala. Daí a sucessão de fronteiras de expansão cuja ocupação caracteriza tão fortemente a história nacional. A Amazônia de hoje é apenas mais um capítulo dessa dinâmica de longa duração. Se esse sistema propicia esse esbanjamento, por outro ele tem ajudado a frear a velocidade de expansão das fronteiras agrícolas, já que ele tem vencido secularmente qualquer tendência à democratização do acesso à terra – e esse acesso democratizado, desejável do ponto de vista político, na ausência de outros fatores, apenas aceleraria a ocupação e a destruição das fronteiras do passado, do presente e do futuro. Esse caráter ambientalmente ambíguo do sistema agrário socialmente iníquo de grande propriedades terá que ser matéria de muitos estudos de história ambiental.


Fonte: História Agora

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