Litrografia de Loeillot (1840-1876) |
Por Edson Struminski
A descoberta de um novo mundo habitado por povos e por uma natureza
então desconhecidos foi o fato mais extraordinário e decisivo da
história moderna ocidental. Este fato desencadeou uma vasta elaboração
de discursos e visões sobre esta nova natureza descoberta.
A carta de Pero Vaz de Caminha, cronista da descoberta portuguesa do
Brasil, ao rei D. Manuel costuma ser considerada o primeiro documento
literário sobre o Brasil. Caminha era um letrado, de formação humanista,
assim ele se mostra muito mais interessado em descrever os povos
indígenas e seus costumes que a natureza, o ambiente e os recursos do
mundo que via, algo que eventualmente até teria até mais interesse para a
Coroa portuguesa. Mesmo assim é no documento de Caminha que aparecem os
primeiros registros de aves, peixes, repteis e também uma descrição, no
mínimo acertada da nova terra. “Pelo sertão nos pareceu, vista do mar,
muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terra com
arvoredos, que nos parecia muito longa” (1).
Do levantamento que Cândido de Mello Leitão, que resgatei, elaborado
em 1937 sobre a história da biologia no Brasil (2), podemos constatar
que esta ciência estava em estágio embrionário nos anos 500. Assim, o
que tivemos no Brasil, por certo tempo, foram cronistas, mais ou menos
espantados com a natureza brasileira, mas que se limitaram a descrever
animais e plantas vistos de passagem pelo país. É o caso de Caminha e
também de Américo Vespúcio, Francisco Pigafetta (cronista da viagem de
Fernão de Magalhães), do espanhol Cabeza de Vaca e de Ulrich Schmidel e
Hans Staden, alemães que chegaram a viver alguns anos no Brasil.
Mas existem exceções. Mello Leitão considera o jesuíta José de
Anchieta o fundador da história natural do Brasil. É de 1560 uma
epístola de Anchieta que descreve, ainda com uma certa dose de fantasia,
a flora e a fauna brasileira. Mas ele segue um método, o método
quinhentista, que classifica a fauna em “aquáticos, terrestres e
aéreos”. Anchieta refere-se, desta forma, a 25 animais, que vão de
grandes mamíferos a invertebrados, incluindo, ainda, sete espécies de
serpentes, a respeito das quais descreve sintomas de envenenamento e
tratamentos, além de diversos mamíferos que eram usados, então, para
alimentação pelos indígenas.
Na parte botânica da sua epístola, também segundo o molde
quinhentista, Anchieta descreve “plantas alimentícias” entre as quais
raízes e frutos ainda hoje utilizados no Brasil como a mandioca ou o
caju e medicinais, incluindo aí seu uso pelos indígenas. Anchieta
realiza assim, com sua descrição de plantas e animais, juntamente com
seu uso humano, um primórdio do que hoje entenderíamos por etnofauna e
etnobotânica.
Mello Leitão prossegue descrevendo a “História da Província de Santa
Cruz”, do português Pero de Magalhães Gandavo, que ele considera
inferior ao trabalho de Anchieta, mas que ainda assim acrescenta
novidades em um capítulo sobre avifauna, onde descreve animais vistosos
como gaviões e papagaios.
Do franciscano francês André Thevet, tem-se novamente o relato, sem
método, dos viajantes da época. Os franceses tiveram uma curta aventura
colonialista no Brasil e Thevet vem falar das “singularidades” desta
França Antartica, entretanto é um apanhado inferior ao de Anchieta,
muito embora sempre apareçam descrições de novas espécies. Do mesmo modo
é o trabalho de Jean de Lery, que afirmou viver com os Tupinambás por
quase um ano e foi rival de Thevet, a quem contestou em seus escritos.
Ele descreve “animais, caça, grandes lagartos e outros seres monstruosos
da América” e aves “boas de comer” e outras de plumagens belas, tão
apreciadas na Europa na época, mas segundo Mello Leitão, seu trabalho é
inferior aos de seus antecessores. Lery demonstra conhecer umas vinte
plantas, entre as quais o fumo e o pau-brasil (Caesalpinia echinata), esta última a árvore que seria o primeiro “produto de exportação”, na verdade contrabando, da nova nação.
Novamente é a partir de outro jesuíta, Fernão Cardim, que entre 1583 e
93 esteve no Brasil que surge a produção de um documento de valor sobre
a biologia brasileira em “Do clima e Terra do Brasil”. Neste documento
surge uma lista mais completa de mamíferos e uma descrição mais completa
dos animais, que a dos antecessores. Da mesma forma, a descrição
botânica de Cardim é mais completa, com dez capítulos onde aparecem
árvores que dão fruto, outras medicinais, as que dão óleo ou madeira, as
ervas comestíveis e medicinais, além de canas (bambusáceas) e as
espécies de mangue.
Com Gabriel Soares de Souza surge uma interessante novidade. Vindo ao
Brasil em 1567 para tornar-se senhor de engenho, Soares de Souza
fixa-se na região nordeste do país, ao contrário dos cronistas
anteriores, que escreveram sobre a natureza do sul e sudeste brasileiro.
Escreve um “Tratado descritivo do Brasil”, com cinqüenta e nove
capítulos para animais e quarenta e um para plantas. Embora seu livro
misture, segundo Mello Leitão, observações judiciosas com lendas e
confusões, ainda assim considera seu livro como mais um dos marcos
confiáveis sobre o estudo biológico no Brasil.
Warren Dean (3), considera que os esboços e relatos produzidos no
século XVI no Brasil eram esforços amadores e que o interesse da
Metrópole pela vegetação e pela vida animal da colônia era limitado.
Segundo ele, os colonizadores preferiram ignorar as espécies nativas e
efetuar transferências bióticas já conhecidas por eles para o Brasil a
partir de regiões semi-tropicais européias, ou de regiões tropicais de
suas colônias asiáticas ou africanas. Este fato é real e mesmo hoje, a
base da agropecuária brasileira é feita a partir destas espécies
introduzidas. Mas a análise de Dean não é totalmente correta.
Certamente o intento português de conquistar e transformar o novo
território se evidenciaria no pragmatismo das relações dos colonizadores
com o novo ambiente. Em um primeiro momento, o desprezo ou escravização
da população nativa e destruição dos ecossistemas naturais seria
realizado para viabilizar a implantação da monocultura do açúcar.
Mas para sermos justos com os portugueses, da leitura de Mello Leitão
percebe-se que entre os europeus, foram na verdade, os letrados deste
país, religiosos ou leigos, que produziram os conhecimentos mais
interessantes, do ponto de vista biológico, da natureza do Brasil nos
anos 500. Eles utilizaram as ferramentas de produção de conhecimento,
que incluía a classificação de animais e plantas, compatíveis com o status
científico europeu da época. Possivelmente estes cronistas descreveram
inclusive as primeiras espécies extintas no Brasil por conta da
exploração predatória dos colonizadores.
De qualquer modo, o conhecimento biológico levantado por portugueses
teve destino diferente daquele produzido por outros europeus que
estiveram no Brasil, o que mostra, de fato, um descaso com o trabalho
destes primeiros cronistas. Enquanto alemães e franceses publicavam, sem
maiores dificuldades, seus relatos de viagens e observações,
portugueses tinham seus originais desprezados ou roubados. Anchieta só
foi publicado em 1799, Gabriel Soares de Souza em 1825 e Fernão Cardim
teve seus escritos tomados pelo corsário Francis Cook que o aprisionou
em uma viagem a Portugal e vendeu seus escritos, que foram publicados
por Samuel Purchas, na Inglaterra, em 1625.
Por Edson Struminski, eng. florestal, Dr. em Meio Ambiente e Desenvolvimento - Brasil
PEREIRA, P. R. Os três únicos testemunhos do descobrimento do Brasil. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1999.
MELLO LEITÃO, C. A biologia no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937.
DEAN, W. A ferro e a fogo, a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
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