quinta-feira, 26 de abril de 2012

A Natureza que D. João VI viu no Brasil

Entrada do Jardim Botânico e suas Palmeiras-Imperiais, s/d. SISSON, Sebastien Auguste Youds, J. - Museu Imperial, Petrópolis, RJ.Crédito: Visões do Rio na Coleção Geyer, Centro Cultural Banco do Brasil
Por Edson Struminski
Que tipo de paisagem D. João VI e os portugueses que com ele vieram viram no Brasil? Que relações esta paisagem ainda guarda com a realidade brasileira após 200 anos? A vinda da Família Real portuguesa para o Brasil em 1808, foi um marco e um acontecimento sem precedentes na história brasileira, pois foi a primeira vez que uma monarquia europeia pisou em solo americano. 

Após várias revoltas com vernizes liberais e republicanos acontecidas no país, no século XVIII, a chegada da corte reforçaria a ideia do papel do Estado monárquico conservador, mas, ao mesmo tempo, faria com que os velhos padrões económicos coloniais se vissem ameaçados pela abertura e liberalização dos portos, a qual favoreceria os grandes comerciantes cariocas em detrimento dos portugueses da Metrópole.

Como também é bem conhecido, a transferência da corte trouxe para a América portuguesa não só a Família Real, mas também o governo da Metrópole e, sobretudo, boa parte do aparato administrativo português. No total algo em torno de 20 mil pessoas transferiram-se de Portugal para o Rio de Janeiro e tiveram de se ajeitar em uma cidade precária, gerando com isto um caos urbano, situação que entrou para o folclore do país.

No entanto, apesar da imagem caricata com que é pintado muitas vezes no Brasil e que aparece em filmes como "Carlota Joaquina", D. João era um monarca esclarecido e sua vinda alterou o status político do Brasil, além de criar uma nova base para seu desenvolvimento. Villalta (1997), mostra que a transferência da corte para o Rio trouxe não só a abertura económica e a demanda por instalações industriais inexistentes no Brasil mas também impulsionou a política de desenvolvimento de pesquisas científicas, incluindo jardins botânicos e a abertura de instituições de ensino, ainda que estas fossem marcadas, por um carácter pragmático e fragmentado (aulas régias) que não levaram a um progresso científico expressivo e não alteraram a dependência da Universidade de Coimbra, mas que fomentaram o início da ciência no Brasil.

Tão importante como este fato, a abertura do país abriu para os olhos dos naturalistas e pesquisadores europeus, a imensa e espantosa natureza tropical brasileira, que até então tinha sido mantida escondida a sete chaves pelos administradores portugueses.

De facto, tornar-se-iam frequentes, não só durante a presença de D. João, mas pelo período imperial adentro, as viagens e expedições elaboradas por cientistas dos mais variados países, que invariavelmente se mostrariam deslumbrados com as belezas da natureza tropical e se disporiam a toda sorte de desconfortos para conhecê-la.

O jovem e esforçado botânico francês Auguste de Saint-Hilaire passou 6 anos viajando pelo Brasil, a partir de 1816. De forma simples ele explica a curiosidade que a terra brasileira exercia sobre ele e sobre os cientistas da época: "O gosto pela história natural faz nascer o de viajar... Quando o rei D. João VI mudou para o Rio de Janeiro a sede do seu império, o Brasil abriu-se finalmente, para os estrangeiros. Essa terra, nova ainda, prometia aos naturalistas as mais ricas messes, foi ela que eu me dispus a percorrer".

E é assim, pelos olhos destes naturalistas europeus que podemos vislumbrar a natureza que podia ser encontrada no período joalino no Brasil, uma natureza que ainda tinha muito de selvagem, como sugere a frase a seguir, de Spix e Martius, citada pelo historiador Warren Dean (1997): "É indiscutível o encanto desta região, onde frescos bosques alternam com extensas campinas cheias de claras fontes e de grupos majestosos de palmeiras, o qual é realçado pelo fato de não parecer profanado pela mão da civilização".

"Larangeiros" 1824
"Larangeiros" 1824
Saint-Hilaire dá-nos uma indicação clara de como entender este ambiente: "Para conhecer toda a beleza das florestas tropicais, é necessário penetrar nesses retiros tão antigos como o mundo". De facto, nas palavras deles veríamos que a imponência das florestas tropicais levaria à formação de um julgamento erróneo a respeito da antiguidade destas florestas, que levaria décadas para ser desfeito. Efectivamente as árvores eram velhas, porém as florestas tropicais eram jovens componentes da paisagem do ponto de vista geológico. 
No fim do período colonial o grande assalto à natureza do Brasil ainda estava por acontecer na região sudeste do país, um assalto que alteraria radicalmente sua paisagem. Na época de D. João VI e por vários anos, porém, a paisagem ainda reservaria, muito da sua natureza primitiva, algo que provavelmente a corte portuguesa ainda viu no país.

Saint-Hilaire saindo do Rio de Janeiro em direcção a Minas Gerais, comenta o que vislumbrou: "Florestas virgens tão velhas como o mundo exibem sua imponência, quase às portas da cidade e formam um contraste encantador com o trabalho dos homens". Ao mesmo tempo ele nos dá conta da agitação necessária para manter a cidade: "As estradas vizinhas da capital do Brasil são hoje em dia tão movimentadas como as que conduzem às grandes cidades da Europa".

Por esta época, o açúcar, que havia sustentado a colónia, já estava sofrendo uma lenta queda na cotação do comércio externo em função da concorrência de Cuba e do açúcar de beterraba europeu e o café ainda não se havia tornado o pólo dinâmico do sistema agro-exportador brasileiro, algo que só aconteceria a partir de 1830, com auge na segunda metade do século XIX.

Passando os arredores mais imediatos do Rio de Janeiro, Saint-Hilaire corrige-se e constata que a própria vizinhança da cidade ainda tinha uma ocupação urbana modesta com áreas de natureza preservada: "Se próximo ao Rio de Janeiro podemo-nos julgar nos arredores de uma das maiores cidades da Europa, essa ilusão em breve se dissipa. À medida que nos afastamos.... vê-se cada vez menos habitações, as vendas rareiam, encontram-se menos terrenos cultivados, os bosques tornam-se mais comuns e como cada vez mais nos aproximamos das montanhas, o aspecto da região toma carácter mais grave".

A paisagem, no entanto, era outra na antiga região aurífera das Minas Gerais, então em queda populacional após o auge da exploração mineral que ocorreu no fim do século XVIII. Após passar por Vila Rica, primeira capital desta província, Saint-Hilaire constata que "os morros que a rodeiam são cobertos por uma relva pardacenta e exibem a imagem da esterilidade".

Ele dá-nos uma medida para avaliar as mudanças ocorridas: "Bastaram-nos duas horas de trajecto para chegar a Mariana..., os primeiros habitantes gastavam cinco dias, quando a região ainda era coberta de matas virgens." Como outro visitante ilustre, o brasileiro José Bonifácio já havia constatado, o desmatamento levava a uma decadência geral, devido à baixa fertilidade natural dos solos. Saint-Hilaire também percebeu isto, pois para ele "todo o sistema de agricultura brasileira é baseado na destruição de florestas e onde não há matas, não existe lavoura". As próprias minas de ferro, riquíssimas na época, não podiam ser exploradas por falta de combustível.

No entanto, se o hábito da queimada era usual na população, ele também recebia incentivos oficiais do Estado. Saint-Hilaire explicou isto da seguinte forma: "Por um ignorância fácil de compreender quando se conhecem as relações do governo português com suas colónias, o próprio ministério, que se devia opor com todas as forças à destruição das matas, também contribui para acelerá-la... Por ocasião da chegada do soberano, o conde de Linhares fez promulgar um decreto que isentava de impostos, durante dez anos, os colonos que se fossem estabelecer no meio das matas".

Saint-Hilaire cumpria assim o papel de crítico ambiental que os cientistas teriam a partir de então. Ele simplesmente notou que o ciclo agrícola queimada-plantio-abandono durava menos que dez anos, gerava destruição e nenhum imposto pago.

Mesmo com estes impactos evidentes em Minas Gerais, os visitantes ainda teriam oportunidade de conhecer belas paisagens no país. Em 1832, poucos anos após a independência do Brasil esteve no Rio de Janeiro, outro ilustre visitante, que teria oportunidade de conhecer um pouco de uma paisagem que ainda permanecia selvagem, o inglês Charles Darwin. Darwin pôde vislumbrar vistas deslumbrantes em pontos que hoje estão envoltos pela malha urbana desta cidade.

Em uma excursão à Pedra da Gávea, imponente montanha à beira mar, ele mostra-se estonteado com a paisagem, como podemos ver no texto retirado do seu diário de viagem: "Seguindo por uma picada, penetrei no interior de uma nobre floresta e, de uma altura de cento e cinquenta a duzentos metros, pude contemplar um dos soberbos panoramas tão comuns ao redor de todo o Rio. Vista desta altura, a paisagem atinge o máximo de brilho no seu colorido e todas as formas e sombras ultrapassam de modo tudo quanto um europeu possa jamais ter visto em sua terra natal, que não sabe como há de expressar as emoções do seu espírito".

Após a metade do século XIX o plantio do café iniciaria uma dinâmica de ocupação de solos e desmatamentos que só cessaria em 1930 e devastaria boa parte da Floresta Atlântica brasileira. No entanto esta região da Gávea visitada por Darwin teve um curioso destino. Sua floresta foi queimada e transformou-se em plantação de café no decorrer do século XIX, mas acabou sendo desapropriada ainda durante o império frente à constatação de falta de água para a capital do país gerada por esta ocupação predatória. Acabou sendo palco de um inédito projecto de recuperação ambiental que levou à formação de uma floresta secundária que, décadas depois, acabaria virando um parque nacional urbano. Assim, fato raro, podemos ainda vislumbrar nos caminhos que andam pela Pedra da Gávea, um pouco das imagens e sentir um pouco das sensações dos portugueses que desembarcaram no Brasil em 1808.

BIBLIOGRAFIA

VILLALTA, L.C. O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura. In: História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. V.1. p. 331 - 386.

DEAN, W. A ferro e a fogo, a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

SAINT-HILAIRE, A. Viagem pelas Províncias de Rio de Janeiro e Minas Geraes. Tomo I. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938.

DARWIN, C. Viagem de um naturalista ao redor do mundo. São Paulo: Abril Cultural, s/d.

Fonte: Rede Brasileira de História Ambiental

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